Decisão revolta promotoria, que acusa Conselho da Justiça Militar de ignorar provas e depoimento da vítima; julgamento teria desrespeitado protocolo de gênero do CNJ
Por Sandra Venancio – Foto Reprodução/EPTV
O policial militar Leonardo Aparecido Martins Goulart, flagrado em vídeo agredindo uma dona de casa com um soco no rosto durante abordagem em Campinas, foi absolvido nesta quarta-feira (20) pelo Tribunal de Justiça Militar da acusação de violência arbitrária. Ele foi condenado apenas por lesão corporal dolosa, com pena de seis meses de detenção em regime aberto. O Ministério Público anunciou que vai recorrer.
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A decisão revoltou a acusação. Para o promotor de Justiça Marcel de Bianco Cestaro, o julgamento foi “desarrazoado” e “divorciado das provas dos autos”. “O tribunal ignorou o depoimento da vítima, que é uma mulher. O CNJ tem uma resolução sobre a necessidade de julgamento com perspectiva de gênero, mas isso não foi respeitado”, afirmou.
O caso
A agressão ocorreu em 21 de outubro de 2024, no bairro Jardim Santa Amália, e foi registrada por câmeras de segurança. O vídeo, divulgado em dezembro, mostra o momento em que três policiais cercam a vítima, enquanto Goulart desfere um soco no rosto da mulher, que cai no chão.
A vítima contou que o policial, segurando algemas, atingiu seu rosto e a jogou no chão, provocando desmaio e fraturas. Em seguida, foi algemada, levada a um pronto-socorro e, depois, à delegacia. Segundo a defesa, ela sofreu ameaças para não registrar ocorrência e vive até hoje em estado de terror.
O julgamento
O PM respondeu por dois crimes em instâncias diferentes:
- Lesão corporal dolosa: julgado por juiz de Direito, resultou na condenação a seis meses de regime aberto.
- Violência arbitrária: analisada pelo Conselho de Justiça Militar, composto por juiz e quatro oficiais da PM, resultou em absolvição por maioria (3 a 2).
O tribunal justificou a decisão alegando “falta de provas” e que as imagens apresentadas “não estavam íntegras”. O argumento é contestado pelo Ministério Público e pela advogada da vítima, Thaís Cremasco, que afirma que “as imagens são claras” e que houve “machismo institucional” no julgamento.
Perspectiva de gênero ignorada
Especialistas lembram que, desde 2023, o protocolo do CNJ obriga magistrados a considerar estereótipos e desigualdades de gênero em julgamentos. A medida foi criada após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em caso de feminicídio.
Segundo Maíra Recchia, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da OAB-SP, não se trata de um favor, mas de justiça:
“Esse protocolo é um avanço civilizatório. Ele impede que preconceitos se reproduzam dentro dos tribunais”, afirma.
Vítima pede reparação
Além da esfera criminal, a defesa da vítima entrou em maio com ação de indenização contra o Estado, pedindo reparação por dano moral, material e estético. Ela afirma sofrer até hoje com sequelas físicas, dores faciais, cicatriz e abalo psicológico, além de medo constante por conta das ameaças recebidas.
Ministério Público vai recorrer
O Ministério Público promete recorrer para que Goulart seja condenado também por violência arbitrária. “As imagens são incontestáveis e revelam uma agressão inadmissível de um PM em serviço contra uma mulher desarmada. Esperamos que em segunda instância a decisão seja reformada”, afirmou Cestaro.
Como funciona a Justiça Militar no Brasil
A Justiça Militar é um ramo especializado do Poder Judiciário responsável por julgar crimes cometidos por membros das Forças Armadas e das Polícias Militares no exercício da função ou em razão dela. No caso das polícias estaduais, como a Polícia Militar de São Paulo, os julgamentos por crimes militares são realizados pelo Tribunal de Justiça Militar (TJM), composto por juízes de Direito e oficiais da própria corporação.
O julgamento ocorre em conselhos formados por um juiz de Direito e quatro oficiais da PM, que decidem sobre a culpabilidade ou absolvição do policial. Crimes como violência arbitrária, abuso de autoridade e desrespeito à lei durante a atuação policial são típicos da competência da Justiça Militar.
A legislação prevê que os tribunais militares analisem não apenas a tipificação do crime, mas também a conduta funcional do militar, o que gera críticas quanto à possível parcialidade, já que colegas de corporação participam do julgamento. Por isso, casos como o de Leonardo Aparecido Martins Goulart — absolvido da violência arbitrária — frequentemente provocam debates sobre imparcialidade, impunidade e a aplicação de protocolos de gênero e direitos humanos.