O mistério do avião russo que pousou no Brasil sem registro na Anac

Um cargueiro estratégico russo Ilyushin IL-76TD (RA-78765) pousou em Brasília em 10 de agosto e permaneceu até o dia 13, estacionado na Base Aérea de Brasília (BABR). A aeronave é operada pela Aviacon Zitotrans, empresa sob sanções dos Estados Unidos desde 2023 por transportar material bélico para a Coreia do Norte e realizar voos de carga para a Venezuela e países da África, em violação a embargos internacionais contra Moscou.

A estadia de três dias foi considerada atípica, já que não houve registro do voo nos sistemas da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) — indício de que se tratava de trânsito de Estado e não de operação comercial.

“Nossa companhia aérea opera voos fretados de carga”, informou a assessoria de imprensa da empresa ao portal Metrópoles. “No entanto, nosso cliente que reservou o voo solicitou que não divulgássemos nenhuma informação comercial relacionada aos seus negócios”.

Ou seja, o cliente da Aviacon Zitotrans pediu anonimato.

Debate constitucional

Segundo a Constituição (art. 49, II), é da competência exclusiva do Congresso Nacional permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente. Sem essa anuência, o trânsito de aeronave de Estado estrangeira pode ser irregular.

Parlamentares já reagiram: senadores e deputados apresentaram requerimentos de informação aos ministérios de Relações Exteriores, Defesa e Portos e Aeroportos, cobrando quem autorizou a operação, qual a finalidade, qual a carga e a tripulação e quais protocolos foram observados. Os ministros têm 30 dias para responder.

Enquanto permaneceu na base, apenas a cauda do cargueiro era visível para quem observava do terminal de passageiros do aeroporto Juscelino Kubitschek. Militares da FAB evitavam dar informações, limitando-se a dizer que “não podiam comentar”.

Itinerário estratégico

O avião partiu de Moscou em 7/8, fez escalas em Baku (Azerbaijão), Argel (Argélia) e Conacri (Guiné), aterrissando em Brasília às 8h12 do dia 10. Três dias depois, em 13/8, decolou às 19h16 rumo à Bolívia, seguindo depois para Bogotá (Colômbia), Caracas (Venezuela) e Havana (Cuba).

A permanência no Brasil destoou das demais escalas, todas inferiores a 24 horas.

Documento interno da FAB

Um calendário interno (QTM de agosto) da Base Aérea de Brasília trouxe as anotações “DESEMB RÚSSIA — 10/8” e “EMB RÚSSIA — 13/8”. As siglas significam desembarque e embarque, indicando planejamento prévio de trânsito oficial.

Fontes confirmaram à reportagem que o QTM não é classificado como sigiloso: encontra-se disponível na intranet da BABR, em caráter ostensivo, acessível a todo o efetivo. Trata-se de um documento de rotina, que aciona protocolos como reserva de pátio, segurança, abastecimento e hospedagem.

A anotação comprova planejamento institucional do atendimento à aeronave, amparado pelo Programa de Trabalho Anual (PTA) da BABR e pela ICA 205-22, norma que regula o trânsito de comitivas e autoridades estrangeiras em bases militares.

Em resumo: não foi uma escala técnica fortuita, mas um atendimento coordenado a uma aeronave de Estado estrangeira.

Contexto internacional

A passagem do cargueiro russo ocorreu em meio a uma escalada de tensões no entorno da Venezuela.

  • 19 de agosto: seis dias após o IL-76 deixar Brasília, um C-32B da Força Aérea dos EUA pousou em Porto Alegre. Segundo a PF, levava diplomatas.
  • Na mesma semana, os EUA deslocaram três destróieres Aegis para o Caribe, com mais de 4.000 militares, em operação “antinarcóticos”.
  • Washington elevou a recompensa pela prisão de Nicolás Maduro para US$ 50 milhões.
  • Caracas respondeu com exercícios militares e acusações de “ameaça imperial”.

Embora não haja prova de ligação direta entre os fatos, a coincidência temporal é evidente: a chegada de um avião russo sob sanções ao Brasil ocorre no mesmo período de forte movimentação militar americana contra a Venezuela, aliada estratégica de Moscou.

Atritos diplomáticos

A situação se soma a outros episódios recentes:

  • Em 2022, um Boeing 747-300 da estatal venezuelana Conviasa foi retido na Argentina.
  • Em 2024, o Il-96 que trouxe Lavrov ao Rio só conseguiu abastecer por meio de uma empresa brasileira, depois punida pelos EUA.
  • Agora, o RA-78765 da Aviacon Zitotrans estacionou em Brasília.

A Agência Lupa chegou a publicar, em 19/8/2025, que o avião teria matrícula “AZS-1705”, mas essa informação é equivocada: trata-se apenas do callsign do voo. A matrícula é fixa — RA-78765 — justamente a que integra a lista de sanções do Tesouro dos EUA.

Pressão no Congresso

Parlamentares querem explicações imediatas:

  • Senador Márcio Bittar (União-AC) protocolou requerimentos aos ministros Mauro Vieira (Itamaraty) e José Múcio (Defesa).
  • Deputado General Girão (PL-RN) sustenta que o caso fere a Constituição.
  • Deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) pediu dados à Anac sobre a aterrissagem.
  • Senadora Damares Alves (PP-DF) questiona se houve desembarque de até 5 toneladas de carga.

As respostas podem indicar se o Brasil apenas serviu como ponto de apoio logístico ou se houve envolvimento em uma ação coordenada da Rússia na região.

Pergunta que fica

A revelação do QTM amplia as dúvidas: quem autorizou a entrada de um cargueiro militar russo sancionado no coração da capital brasileira?

Entre os dias 10 e 13 de agosto de 2025, a Rússia esteve oficialmente em Brasília. Agora, resta ao governo explicar: o que Moscou veio fazer aqui?

(Reportagem exclusiva de David Agape)

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