Reforma Administrativa vai atacar regalias no Judiciário

Texto que será apresentado na próxima semana propõe mais de 70 medidas, e vitaliciedade no Judiciário pode ser extinta

Brasília – Contida há décadas em razão do forte lobby exercido pelo alto funcionalismo do serviço público federal, regalias insustentáveis sob o ponto de vista fiscal podem ser extintas segundo o que prevê o relatório da Reforma Administrativa, do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que começa a ser examinado na semana que vem na Câmara dos Deputados.

O texto propõe uma série de modificações substanciais nas normas que regem o serviço público brasileiro. O ponto central que deve dominar os debates será a proibição da aposentadoria compulsória como forma de punição para juízes e membros do Ministério Público (MP), abrindo caminho para a demissão desses profissionais por meio de processo administrativo disciplinar.

O texto integral da proposta deve ser oficialmente apresentado na próxima semana, com o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), indicando a pauta como uma de suas prioridades, apesar de contrariar o desejo do governo do PT, fiel depositário de regalias que eternizam a gastança milionária para certas castas da máquina pública.

A proposta, que concentra 70 medidas distribuídas em quatro eixos – estratégia, governança e gestão; transformação digital; profissionalização do serviço público; e combate a privilégios – busca, segundo o relator, corrigir distorções e modernizar a máquina estatal.

A alteração em relação à aposentadoria compulsória está inserida no eixo de combate a privilégios. Atualmente, juízes e membros do MP gozam de vitaliciedade, só perdendo o cargo por sentença judicial transitada em julgado. A aposentadoria compulsória é uma sanção aplicada pelos tribunais ou pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, embora afaste o magistrado de suas funções, garante o recebimento de aposentadoria. Pedro Paulo classifica essa situação como um “prêmio para quem comete má conduta”, e a intenção é instituir o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para que uma decisão de colegiado do CNJ ou do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) leve à demissão sem remuneração.

A pertinência dessa mudança é corroborada por dados: um levantamento da ONG Fiquem Sabendo, com base em informações do CNJ, revelou que, entre 2008 e abril de 2024, 135 magistrados foram punidos, sendo a maioria (59%) aposentada compulsoriamente, sem que nenhum deles fosse demitido. Essa estatística, presente no documento, reforça a narrativa de que a punição atual não é dissuasória o suficiente. A reforma aproveita os termos de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) já apresentada pelo ex-senador e ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, evidenciando uma base prévia para a iniciativa.

Privilégios inaceitáveis
Além do fim da aposentadoria compulsória, a Reforma Administrativa avança em outros pontos que visam a reduzir o que são considerados privilégios no serviço público. Uma das propostas é a proibição de férias anuais superiores a 30 dias para servidores públicos, equiparando-se ao setor privado. Atualmente, categorias como juízes e promotores podem desfrutar de 60 dias de férias anuais. Da mesma forma, o texto busca eliminar a concessão de remuneração adicional de férias superior a um terço do salário, prática que hoje permite a algumas carreiras instituir adicionais de até 50%.

Outro foco significativo da reforma é a limitação das chamadas “verbas de caráter disfarçado de indenização”, popularmente conhecidas como penduricalhos. A ideia é estabelecer uma definição mais restritiva do que podem ser consideradas verbas indenizatórias pagas a servidores. O documento aponta que a maioria desses benefícios é instituída com caráter indenizatório para não estarem sujeitos ao teto constitucional dos salários públicos (atualmente fixado em R$ 46.366,19, equivalente à remuneração de ministro do STF) e para não incidirem sobre eles o Imposto de Renda. A proposta é instituir um teto de gastos para essas verbas, limitado às despesas realizadas em 2020, corrigidas pela inflação do período.

Ainda no escopo da redução de privilégios, o relator Pedro Paulo propõe o fim da extensão de benefícios e vantagens específicas de uma carreira do serviço público para outra, com base em argumentos de simetria constitucional e paridade. A medida visa a coibir a replicação de vantagens entre diferentes categorias. O relatório também abordará os fundos destinados a custear benefícios econômicos a categorias do funcionalismo, propondo a proibição da criação de novos fundos para pagamento de remunerações e benefícios, embora os existentes continuassem. Todos os fundos com essa finalidade passariam a ter caráter público, sujeitos à fiscalização dos tribunais de contas e com seus dados publicizados.

A disciplina dos honorários de sucumbência – valores pagos pela parte perdedora de um processo aos advogados da parte vencedora – para advogados públicos também está em pauta. Embora a proposta mantenha a possibilidade de recebimento, exige que os critérios de distribuição desses valores sejam mais transparentes e efetivamente direcionados aos advogados que atuaram na causa que gerou os honorários.

Além das medidas de combate a privilégios, a reforma contempla:
– Avaliação de Desempenho: Definição de critérios que serão considerados na progressão de carreira, com bônus para metas atingidas;

– Teto Salarial: Extensão do teto do funcionalismo para funcionários de estatais não dependentes, como BNDES e Caixa;

– Retroatividade de Benefícios: Decisões para retroatividade de concessão de benefícios deverão ser transitadas em julgado, reconhecidas pelo CNJ e individualizadas;

Home Office: Limitação a 20% da força de trabalho do órgão e restrição a um dia por semana, com exceções mediante justificativa;

Tempo de Serviço: Não serão permitidas progressões e licenças unicamente condicionadas ao tempo de serviço;

Progressão na Carreira: A ideia é que todas as carreiras tenham ao menos 20 níveis de progressão, impedindo que servidores cheguem ao topo muito rapidamente;

Serviços Notariais e de Registro: Estabelecimento de teto para remuneração líquida dos titulares dos serviços de notas e lei nacional para fixar emolumentos.

O projeto também deverá propor um período de desincompatibilização de seis meses a um ano para que membros de associações de classe possam se candidatar a vagas do CNJ e do CNMP. Essa medida, conforme o relator, visa a reduzir eventuais conflitos de interesses nos dois órgãos, que disciplinam benefícios dos integrantes do Judiciário e do MP, garantindo que suas decisões tenham a independência necessária e não a predominância de interesses corporativistas.

Jeitinho brasileiro
O professor Bruno Carazza, da Fundação Dom Cabral, destacou os impactos do desrespeito ao teto salarial e dos privilégios de uma elite no serviço público brasileiro. Carazza, autor do livro “O País dos Privilégios”, abordou como o uso indevido de recursos públicos beneficia poucos servidores, elevando os custos para a população.

Carazza salienta que a prática de ultrapassar o teto salarial estabelecido pela Constituição “fere os princípios da legislação e da moralidade pública” e representa uma desconexão com a realidade da maioria dos brasileiros.

O professor explicou que o teto salarial do funcionalismo público é uma das medidas previstas na Constituição para conter abusos. No entanto, segundo ele, o teto é frequentemente “driblado por uma elite do serviço público, que encontra maneiras legais de ultrapassar os limites salariais”, mais conhecido como “jeitinho brasileiro”, de resolver as coisas.

O especialista destacou que essas práticas acabam por criar uma sensação de impunidade e desigualdade entre os próprios servidores, além de comprometer a percepção pública sobre a função desses cargos.

“A gente tem uma pequena minoria que consegue rendimentos fora da realidade da sociedade brasileira e do próprio serviço público”, disse Carazza, reforçando que esses casos contribuem para aumentar a insatisfação popular com o uso de recursos públicos.

Na semana passada, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barrosos, declarou que trabalha para um aumento de 24% do salário de todo o funcionalismo do judiciário.

A Reforma Administrativa que será apresentada sinaliza uma reconfiguração ampla das relações de trabalho e das garantias no serviço público brasileiro. Ao focar no fim da aposentadoria compulsória como punição, na redefinição e limitação de benefícios financeiros, e na busca por maior fiscalização e transparência, a proposta procura não apenas otimizar os gastos públicos, mas também redefinir o conceito de remuneração e responsabilidade dentro do funcionalismo, com o objetivo declarado de combater o que é percebido como privilégios e ineficiências.

Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.

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