As viagens de trem para Ananindeua, Marituba e Benevides foram inauguradas com um fiasco

No dia 1º de maio de 1886, um sábado, o Liberal do Pará trouxe, no espaço de sua Seção Livre, pequena nota, onde, pela primeira vez, aparecia a expressão “Clube de Engenharia”.

O jornal era um dos seis diários que circulavam em Belém.

Além deles, a cidade dispunha ainda de cinco jornais semanais.

Tanto o Liberal do Pará quanto os demais periódicos, seus concorrentes, eram publicações que saíam sempre com suas páginas recheadas de propagandas.

Numa demonstração de quanto a economia do Pará estava febrilmente ativada.

E podia, por isto, gerar aquele amplo mercado publicitário.

A nota dizia, simplesmente, que a imprensa e as pessoas interessadas no progresso da província do Pará e da Engenharia estavam convidadas a comparecerem no dia seguinte – no domingo, portanto – à casa nº 64, da Rua Formosa, atual 13 de Maio.

Ali, era acrescentado, às 2 horas da tarde, haveria a sessão de instalação do Clube de Engenharia.

Foi, certamente, sem surpresa que leitores do Liberal do Pará viram aquela nota.

Pois, era evidente,o desenvolvimento urbano de Belém obrigava os engenheiros da cidade a se reunirem.

Para a discussão de como deveriam enfrentar questões relacionadas às novas edificações, a esgotos, a calçamentos, e, aos orçamentos que tinham de elaborar.

Ao surgir, naquele momento, o Clube de Engenharia teve uma diretoria, cujos cargos foram ocupados pelos engenheiros da Estrada de Ferro de Bragança, então, em processo de implantação, e, pelos da Seção de Obras Públicas.

A posse deles ocorreu no dia 2 de maio de 1886.

Eram ligados à Estrada de Ferro de Bragança o presidente do clube, Manuel Odorico Nina Ribeiro, o vice-presidente, Antônio Joaquim de Oliveira Campos, e, o 2º secretário, o capitão José Freire Bezerril Fontenelli.

O vice-presidente, Antônio Joaquim, atuava também na Seção de Obras Públicas.

Mas isto não impedia que ele se dedicasse intensamente à implantação da estrada de ferro.

Que fora uma iniciativa brotada da necessidade de colonizar uma extensa área de terra,compreendida entre Belém e a colônia agrícola de Benevides.

O primeiro trilho foi assentado em 1883, portanto, três anos antes da instalação do clube.

E a expectativa era a de que, com a ferrovia, aparecessem novos núcleos populacionais naquela área.

Mas, o funcionamento dos trens deveria, igualmente, estimular o comércio e a lavoura da zona bragantina.

Isto porque, com a estrada de ferro, o transporte dos produtos da zona agrícola ficaria mais fácil, ágil e barato do que o transporte feito pelos rios.

O leito da estrada começou a ser preparado.

E desde este momento, surgiu o nome de Antônio Joaquim, no livro “A Estrada de Ferro de Bragança”, de Ernesto Cruz.

Ele exercia duas funções.

Era o engenheiro-fiscal da estrada.

E representava o governo provincial junto à empresa construtora, uma sociedade anônima de capitalistas, organizada na corte, sob a direção de Bernardo Caymiri.

A ferrovia iniciou seu funcionamento com a previsão da instalação de 10.000 imigrantes europeus,nos núcleos habitacionais,fundados ao longo da faixa de terra coberta por ela.

Por este motivo, na noite de 17 de novembro de 1885, mais de 50 pessoas, entre políticos, religiosos, militares, barões, desembargadores e profissionais de diversas outras áreas, assinaram a ata de fundação da Sociedade Paraense de Imigração, a entidade que teria como objetivo viabilizara vinda destes imigrantes.

Entre as assinaturas, na ata, lá estava a de Antônio Joaquim.

Outra data importante para a história da estrada de ferro foi 3 de janeiro de 1887, a da publicação da portaria com a qual o governo da província encampou-a, retirando-a da empresa dirigida por Bernardo Caymiri.

Naquele instante, Antônio Joaquim foi oficialmente nomeado para o cargo de diretor da ferrovia.

E, a ele foram atribuídas duas tarefas complexas.

A de inventariar minuciosamente o “material fixo e rodante”.

E, a de estudar o que convinha fazer para que se mantivesse “a viação com a mais severa economia, reduzindo quanto possível o número de viagens a Santa Isabel e ao ponto terminal do Apeú”.

Na portaria era, ainda, recomendado a Antônio Joaquim que propusesse medidas que, do ponto de vista dele, pudessem contribuir “para que a estrada, se não puder custear-se com seus únicos recursos, venha a pesar o menos possível sobre os cofres públicos”.

Com tais atribuições tão relevantes naquele período inicial da longa história da EFB, coube também a Antônio Joaquim se tornar protagonista de uma saborosa micro-história, que guardou em si tudo o que deve conter uma boa história: opulência, expectativa, drama, decepção, raiva.

E que foi salva do esquecimento pelo cuidado de Ernesto Cruz em registrá-la no seu livro.

Ela se deu logo na primeira viagem do trem saído de Belém rumo a Ananindeua, Marituba e Benevides, no dia 9 de novembro de 1884.

Com esta ocorrência Antônio Joaquim lidou porque ainda era o fiscal da estrada de ferro.

Portanto, alguém com autoridade para inocentar,junto ao presidente da província, o maquinista do trem Siqueira Mendes, uma das duas locomotivas nas quais, no dia da inauguração da ferrovia, foram transportadas autoridades e personalidades da província, inclusive o próprio presidente João Silvestre de Souza.

E, no qual estava o próprio Antônio Joaquim.

O incidente foi o seguinte: a viagem nas locomotivas com aqueles figurões se estenderia pelo trajeto, de 29 quilômetros, através das estações São Braz-Sousa Franco-Providência-Ananindeua-Marituba-Benevides.

Durou uma hora e oito minutos, e, correu bem.

Em Benevides, todos almoçaram

E, no meio da tarde, iniciaram o retorno a Belém, novamente em duas locomotivas.

Conta Ernesto Cruz:

“Ao chegar o trem denominado Siqueira Mendes, nas proximidades do quilômetro 14, entre as estações de Marituba e Ananindeua, por um descuido qualquer, a locomotiva desviou-se da linha por estar meio aberta a chave de agulha do desvio e veio a descarrilar, provocando o pânico entre os passageiros da composição.

Dez metros de trilhos ficaram recurvados, os dormentes, partidos, inutilizados e o trem impossibilitado de prosseguir viagem para Belém”.

Alguns passageiros do trem acidentado retornaram a pé para Benevides.

Outros, mais afoitos ou necessitados, encetaram a penosa caminhada de 5 horas até Belém.

No outro dia, o incidente estava nas páginas do Liberal do Pará.

Foi quando coube a Antônio Joaquim enviar uma carta ao presidente da província.

Para, nela, informarque a chave de agulha do desvio devia ter sido aberta por “ignorância ou maldade de algum transeunte”.

Ele garantiu junto àquela autoridade que era “infundada a arguição feita ao maquinista em serviço na locomotiva, ao qual pretende-se lançar a culpa deste incidente”.

Assim, salvou o maquinista de uma punição.

Com isto, o caso foi dado como esclarecido.

E, a estrada pôde passar a operar normalmente.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

English translation (tradução para o inglês)

Train Trips to Ananindeua, Marituba and Benevides Began with a Fiasco

On May 1, 1886, a Saturday, the Liberal do Pará newspaper published, in its Free Section, a short note in which, for the first time, the expression “Engineering Club” appeared.

The paper was one of six daily newspapers circulating in Belém. In addition, the city also had five weekly newspapers. Both the Liberal do Pará and its competitors were publications whose pages were always filled with advertisements — a clear demonstration of how feverishly active Pará’s economy was at the time, capable of sustaining such a broad advertising market.

The note simply stated that the press and all those interested in the progress of the province of Pará and in Engineering were invited to gather the next day — that Sunday — at house no. 64, on Rua Formosa, today called 13 de Maio Street. It added that, at 2 p.m., the installation session of the Engineering Club would be held there.

Surely, readers of Liberal do Pará were not surprised by the announcement. The urban development of Belém clearly demanded that the city’s engineers unite to discuss how they should deal with issues related to new buildings, sewage systems, paving, and the budgets they had to prepare.

At its founding, the Engineering Club elected a board of directors composed of engineers from the Bragança Railway — then under construction — and from the Public Works Department. They took office on May 2, 1886.

Linked to the Bragança Railway were the club’s president, Manuel Odorico Nina Ribeiro; the vice-president, Antônio Joaquim de Oliveira Campos; and the second secretary, Captain José Freire Bezerril Fontenelli. Vice-president Antônio Joaquim also worked in the Public Works Department, but this did not prevent him from dedicating himself intensely to the railway project.

The railway had arisen from the need to colonize a vast area of land between Belém and the agricultural colony of Benevides. The first track was laid in 1883, three years before the club’s creation. It was expected that the railway would encourage new settlements in that area, as well as stimulate trade and farming in the Bragança region. Railway transport promised to be faster, easier, and cheaper than river transport for the region’s agricultural products.

As the roadbed was prepared, the name of Antônio Joaquim already appeared in Ernesto Cruz’s book The Bragança Railway. He held two roles: he was the supervising engineer of the railway and also the provincial government’s representative to the construction company, a joint-stock corporation of investors based in Rio de Janeiro, under the direction of Bernardo Caymiri.

The railway began with the expectation of settling 10,000 European immigrants in the housing centers founded along its route. For this reason, on the night of November 17, 1885, more than 50 people — politicians, clergy, military officers, barons, judges, and professionals of various fields — signed the founding document of the Sociedade Paraense de Imigração (Pará Immigration Society), created to make possible the arrival of these immigrants. Among the signatures was that of Antônio Joaquim.

Another important date in the history of the railway was January 3, 1887, when the provincial government issued an ordinance taking over the line from Bernardo Caymiri’s company. At that moment, Antônio Joaquim was officially appointed director of the railway. Two difficult tasks were assigned to him: to make a detailed inventory of the “fixed and rolling stock,” and to study measures to maintain “operations with the strictest economy, reducing as much as possible the number of trips to Santa Isabel and to the terminal point of Apeú.”

The ordinance also recommended that he propose measures that, in his opinion, could ensure “that the railway, if it cannot sustain itself with its own resources, may burden the public treasury as little as possible.”

Given these responsibilities in the early days of the railway’s long history, Antônio Joaquim also became the protagonist of a curious micro-history, full of what every good story should contain: grandeur, expectation, drama, disappointment, and anger. This episode was preserved from oblivion thanks to Ernesto Cruz’s care in recording it in his book.

It happened on the very first train trip from Belém to Ananindeua, Marituba, and Benevides, on November 9, 1884. At the time, Antônio Joaquim was still the supervising engineer of the railway, a position that gave him the authority to defend the train driver, Siqueira Mendes, before the provincial president. Mendes was at the controls of one of the two locomotives that carried provincial authorities and dignitaries — including President João Silvestre de Souza himself and, aboard the same train, Antônio Joaquim.

The inaugural journey was planned to cover 29 kilometers, stopping at the stations of São Braz, Sousa Franco, Providência, Ananindeua, Marituba, and Benevides. The trip took one hour and eight minutes and went smoothly. In Benevides, the passengers had lunch and, in the afternoon, began the return to Belém, again on two locomotives.

According to Ernesto Cruz:
“When the train named Siqueira Mendes reached the vicinity of kilometer 14, between Marituba and Ananindeua stations, by some accident the locomotive veered off the track because the switch key was half open, and it derailed, causing panic among the passengers. Ten meters of tracks were bent, the sleepers broken and rendered useless, and the train was unable to continue its journey back to Belém.”

Some passengers walked back to Benevides. Others, more daring or in need, endured a grueling five-hour walk back to Belém.

The next day, the Liberal do Pará reported the incident. That was when Antônio Joaquim sent a letter to the provincial president, explaining that the switch key must have been tampered with “out of ignorance or malice by some passerby.” He assured the authority that “the accusation against the driver operating the locomotive, who is being blamed for the incident, is unfounded.”

Thus, he saved the driver from punishment. The case was considered closed, and the railway could continue operating normally.

Oswaldo Coimbra is a writer and journalist

(Illustration: EFB trains, photo by Dimitri Kessel, published in the American magazine Life, 1957)


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