Corte vai decidir se crimes de redução à condição análoga à de escravo podem ou não ser extintos pelo tempo. TRF1 reacendeu debate
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) acolheu recursos do Ministério Público Federal (MPF) e manteve vivo o debate sobre a gravidade e o alcance jurídico do crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal). A discussão gira em torno de um ponto crucial: esses crimes podem prescrever, isto é, deixar de ser punidos após o decurso do prazo previsto na lei?
Segundo o MPF no Pará, a resposta deve ser negativa. Para a instituição, a escravidão contemporânea é uma violação gravíssima de direitos humanos e, por isso, imprescritível — tese já sustentada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Brasil, ao ratificar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e reconhecer a jurisdição da Corte, assumiu a obrigação de tratar tais crimes com o mesmo rigor de delitos de lesa-humanidade.
As ações remetem a fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego no Pará, realizadas em 2003 e 2004. Na época, auditores encontraram trabalhadores submetidos a condições degradantes: sem acesso a água potável, sem banheiros ou alojamentos adequados, vivendo em barracos improvisados, próximos a fornos e fumaça, com direitos trabalhistas negados e contribuições previdenciárias sonegadas.
Casos emblemáticos
Um dos processos envolve a fazenda Bom Jardim, em São Félix do Xingu (PA), onde 23 pessoas foram resgatadas em 2003. A 10ª Turma do TRF1 havia reconhecido a prescrição, mas o procurador regional da República Danilo Pinheiro Dias recorreu, sustentando que tal decisão viola não apenas a CADH, mas também a Constituição Federal.
Outro caso diz respeito a 118 trabalhadores resgatados em 2004 em três fazendas do Pará. As vítimas estavam submetidas a condições precárias de sobrevivência, vivendo em meio à insalubridade e sem garantias mínimas de dignidade. O procurador regional Bruno Caiado de Acioli contestou decisão da 3ª Turma do TRF1 que havia declarado a prescrição, argumentando que as normas internacionais já internalizadas no ordenamento brasileiro possuem caráter supralegal e não permitem a impunidade.
Em ambos os processos, o TRF1 admitiu os recursos e reconheceu a relevância jurídica da matéria. Os casos seguem agora para análise no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O pano de fundo jurídico
O MPF defende que os crimes de escravidão moderna são de jus cogens — normas imperativas do Direito Internacional, das quais nenhum Estado pode se afastar. Isso significa que a regra da prescrição do Código Penal não deve se aplicar, pois não pode se sobrepor a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
A posição encontra respaldo em decisão histórica da CIDH no caso da Fazenda Brasil Verde, que condenou o país por tolerar a escravidão contemporânea. Além disso, a Procuradoria-Geral da República ingressou em abril de 2023 com a ADPF 1053, já em análise no STF, que busca a declaração definitiva de que tais crimes são imprescritíveis.
Recado contra impunidade
O acolhimento dos recursos pelo TRF1 não significa vitória definitiva para o MPF, mas representa um passo importante para que o debate chegue ao mais alto nível do Judiciário. É inadmissível que crimes dessa magnitude, que reeditam em pleno século XXI práticas abolidas formalmente há mais de 130 anos, fiquem sujeitos à prescrição.
Se o STF firmar a tese da imprescritibilidade, o Brasil dará um recado forte contra a impunidade e se alinhará de vez à jurisprudência internacional em defesa dos direitos humanos. Caso contrário, abrirá um perigoso precedente, legitimando que exploradores de mão de obra escrava se beneficiem apenas com a passagem do tempo.
Fontes: Ministério Público Federal no Pará; processos nº 0000453-83.2008.4.01.3901 e nº 0000084-21.2010.4.01.3901; ADPF 1053 (STF).
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