A falta de atenção reinante no ensino do Pará aos elementos que constituem a complexa identidade cultural da Amazônia permite que nossa população se enxergue através da ótica das regiões que detêm o controle político-econômico do país.
Ou melhor, obriga-a a fazê-lo.
De fato, nossa população quase não se enxerga.
Porque, na verdade, a ótica pela qual o amazônico é percebido por aquelas regiões o reduz a um ser mais ou menos invisível.
A Amazônia, através desta ótica, aparece composta quase exclusivamente por vegetação frondosa e rios caudalosos.
Às vezes, por menos, ainda.
Apenas como grandes extensões de água, cobertas por grandes extensões de céu.
Como um novo Gênesis.
Como uma região sem História.
Foi assim que a viu Euclides da Cunha, em 1905, quando percorreu o Rio Purus, comandando uma missão do Ministério do Exterior.
Os paraenses aceitam passivamente essa situação que lhes é imposta, por exemplo, pela programação de televisão e pela cobertura jornalística do país produzidas no eixo Rio/São Paulo.
E, com isso, ignoram sua rica e densa identidade cultural.
Não fazem como os franceses, que recusaram a imagem de seres humanos de segunda classe que os nazistas quiseram impor-lhes quando invadiram a França.
Num de seus livros sobre a ocupação nazista, o filósofo Jean-Paul Sartre escreveu:
“Nunca fomos tão livres, porque todos os dias tínhamos de reafirmar o que somos.”
Por assumirem uma postura completamente diferente, não surpreende que os paraenses desconheçam nomes e destinos de pessoas que contribuíram enormemente com nosso estado e nosso país.
Em primeiro lugar, para que a extensão geográfica privilegiada do Pará se destaque em comparação com a de outros estados no mapa do Brasil, e abarque tantas áreas dotadas de riquezas humanas e materiais da região amazônica.
E, em segundo lugar, para que a extensão geográfica privilegiada do Brasil se destaque em comparação com a de outros países, os que foram colonizados pela Espanha, no mapa da América do Sul.
No entanto, para que essas questões despertassem a curiosidade de qualquer pessoa, bastaria que ela tivesse visto aquilo a que se resumia o nosso território quando Portugal e Espanha dividiram as terras descobertas nas Américas, em 1494, através do Tratado de Tordesilhas.
Por aquele tratado, o Pará tornava-se oficialmente posse portuguesa, mas com extensão reduzida a um terço da que tem hoje.
Todos os atuais estados, à esquerda do Pará em um mapa, não existiam como partes do Brasil.
Inclusive entre eles, os que vieram, depois, a compor o Grão-Pará: Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso.
Porém, com a passagem do tempo, tanto Portugal quanto Espanha admitiram que o Tratado de Tordesilhas não tinha mais força para definir e garantir a real divisão da América.
Foi então assinado, em 1750, o Tratado de Madri.
Através dele, a divisão das possessões seria feita de acordo com uma regra do Direito Internacional, conhecida pela denominação latina uti possidetis, segundo a qual uma terra pertenceria ao reino dos cidadãos que a habitavam.
Com esta regra em vigor, Portugal pôde desenvolver uma estratégia diplomática inteligente:
Deu cidadania aos índios da Amazônia, obtendo assim duas vantagens:
- Retirou das tribos indígenas a tutela que os religiosos exerciam sobre elas, permitindo que a administração portuguesa tivesse acesso à maior riqueza da Amazônia: a mão de obra indígena, até então monopolizada pelos religiosos.
- Tornou os índios colonos portugueses, garantindo para o reino as terras que eles habitavam.
Havia, contudo, um grande desafio a ser enfrentado, tanto por Portugal quanto por Espanha: realizar a demarcação dessas possessões.
A tarefa teria de ser realizada por técnicos europeus, e não lhes seria fácil penetrar nos rincões de uma região desconhecida, tendo de lidar com as dificuldades de adaptação à Amazônia, em uma fase em que a região carecia de infraestrutura capaz de garantir sua sobrevivência.
De qualquer modo, Lisboa contratou alguns dos melhores técnicos da Europa, entre eles profissionais brilhantes:
- Giuseppe Landi, que se tornaria o mais importante construtor erudito da história de Belém;
- João Ângelo Brunelli, padre, matemático e astrônomo;
- João André Schwebel, desenhista, criador das primeiras imagens das aldeias e povoações amazônicas;
- Geraldo de Gronsfeld, autor do melhor projeto de tratamento das áreas alagadas de Belém, com o qual queria transformar a cidade em uma nova Veneza;
- Antônio Galluzzi, construtor da mais bela e imponente obra de engenharia militar na Amazônia, a Fortaleza de Macapá;
- Felipe Sturm, que realizou sozinho a construção de todo o conjunto de obras que transformou a Aldeia de Mariuá, onde a comissão portuguesa deveria negociar com a espanhola, na cidade de Barcelos.
Estes heróis desconhecidos dos paraenses chegaram a Belém em 1753 e oficializaram, com seus mapas, as novas dimensões do nosso estado e do Brasil.
Operaram sob as ordens de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio-irmão do poderoso ministro de Portugal, o Marquês de Pombal. Francisco Furtado governava o Grão-Pará, àquela altura, um estado independente do Brasil, no reino português.
Uma segunda comissão de demarcadores, formada majoritariamente por portugueses e igualmente bem preparada, aportou no Grão-Pará em 1777. Entre seus integrantes estavam dois excepcionais militares:
- O tenente-coronel Theodósio Constantino Chermont, responsável por uma planta de Belém considerada o mais precioso levantamento da cidade realizado no século XVIII;
- O coronel Manoel da Gama Lobo d’Almada, cartógrafo como Chermont, que foi nomeado governador da Capitania de São José do Rio Negro e se tornou o maior administrador da Amazônia no período colonial.
Os sacrifícios que aqueles técnicos europeus tiveram de suportar foram descritos por quem podia dimensioná-los: José Cândido de Melo Carvalho, etnólogo e zoólogo, em seu livro Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá – Uma síntese no seu bicentenário.
Ele sustenta que quem penetrava na Amazônia nos anos de 1700, como aqueles técnicos, enfrentava: sol intenso e calor, fome, perigosas subidas e descidas de cachoeiras, chuvas diluvianas, febres, picadas de pernilongos, muriçocas, piuns, mutucas, formigas-de-fogo, mordidas de candirus e morcegos hematófagos.
Tais provações causaram doenças contínuas a alguns técnicos das comissões de demarcação. Schwebel sentiu dores no peito e chegou a perder sangue pela boca. Outro técnico, Adão Leopoldo de Breunning, sequer pôde entrar nos serviços de sua comissão.
Contudo, os livros didáticos – grande parte deles editados em São Paulo e no Rio de Janeiro – atribuem a expansão do território nacional à busca de ouro e à captura e escravização de índios encetados no interior do país pelas expedições comandadas por bandeirantes paulistas.
Desgraçadamente, os jovens paraenses que estudam nesses livros acreditam nisso.
Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista
English translation (tradução para o inglês)
To Whom We Owe the Current Vast Expanses of Pará and Brazil
The prevailing lack of attention in Pará’s education to the elements that make up the complex cultural identity of the Amazonian people allows our population to see itself only through the lens of the regions that hold the political and economic control of the country.
Or rather, it forces them to do so.
In fact, our population hardly sees itself at all.
Because, in truth, the perspective through which Amazonians are perceived by those regions reduces them to beings that are more or less invisible.
Through this lens, the Amazon appears composed almost exclusively of lush vegetation and mighty rivers.
At times, even less.
Merely as vast expanses of water, covered by vast expanses of sky.
As if it were a new Genesis.
As if it were a region without history.
This was how Euclides da Cunha saw it in 1905, when he traveled along the Purus River, leading a mission for the Ministry of Foreign Affairs.
The people of Pará passively accept this situation imposed on them by, for example, television programming and national press coverage produced in the Rio–São Paulo axis.
And in doing so, they ignore their rich and dense cultural identity.
They do not act like the French, who rejected the image of second-class human beings that the Nazis tried to impose upon them when they invaded France.
In one of his books on the Nazi occupation, the philosopher Jean-Paul Sartre wrote:
“Never were we so free, because every day we had to reaffirm what we are.”
By adopting a completely different stance, it is not surprising that the people of Pará remain unaware of the names and fates of individuals who contributed enormously to our state and country.
First, to ensure that the privileged geographic expanse of Pará stands out in comparison with other states on the map of Brazil—embracing areas rich in human and material resources of the Amazon region.
Second, to ensure that Brazil’s privileged geographic expanse stands out in comparison with other countries—those colonized by Spain—on the map of South America.
Yet, for these questions to awaken curiosity, it would have sufficed to see what our territory amounted to when Portugal and Spain divided the newly discovered lands of the Americas in 1494 through the Treaty of Tordesillas.
By that treaty, Pará officially became Portuguese possession, but with an extension reduced to a third of what it has today.
All the states now lying west of Pará on the map did not exist as parts of Brazil.
Among them were those that later came to compose Grão-Pará: Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso.
With time, however, both Portugal and Spain admitted that the Treaty of Tordesillas no longer had the power to define and guarantee the real division of the Americas.
Thus, in 1750, the Treaty of Madrid was signed.
Through it, the division of possessions would follow a principle of international law, known by its Latin name uti possidetis, according to which land belonged to the crown of the subjects who inhabited it.
With this rule in force, Portugal developed an intelligent diplomatic strategy:
It granted citizenship to the Indigenous peoples of the Amazon, obtaining two advantages:
- It removed Indigenous tribes from the tutelage exercised over them by missionaries, allowing the Portuguese administration access to the greatest wealth of the Amazon: Indigenous labor, previously monopolized by the clergy.
- It turned the Indigenous people into Portuguese settlers, thereby guaranteeing the crown the lands they inhabited.
However, a great challenge remained for both Portugal and Spain: carrying out the demarcation of these possessions.
The task had to be undertaken by European specialists, who faced the difficulty of penetrating the remote areas of an unknown region and adapting to the Amazon, at a time when the region lacked infrastructure to guarantee survival.
Lisbon hired some of the best European technicians, including:
- Giuseppe Landi, who would become the most important learned architect in the history of Belém;
- João Ângelo Brunelli, priest, mathematician, and astronomer;
- João André Schwebel, draftsman and creator of the first images of Amazonian villages and settlements;
- Geraldo de Gronsfeld, author of the best project for managing Belém’s flooded areas, with which he hoped to transform the city into a new Venice;
- Antônio Galluzzi, builder of the most beautiful and imposing work of military engineering in the Amazon: the Fortress of Macapá;
- Felipe Sturm, who single-handedly executed the construction of all works that transformed the village of Mariuá—where the Portuguese commission would negotiate with the Spanish—into the city of Barcelos.
These unknown heroes of Pará arrived in Belém in 1753 and, with their maps, formalized the new dimensions of our state and Brazil.
They worked under Francisco Xavier de Mendonça Furtado, half-brother of Portugal’s powerful minister, the Marquis of Pombal. Furtado governed Grão-Pará, at that time an independent state under the Portuguese crown.
A second commission of surveyors, mostly Portuguese and equally well-prepared, arrived in Grão-Pará in 1777. Among them were two exceptional military officers:
- Lieutenant Colonel Theodósio Constantino Chermont, responsible for a plan of Belém considered the most valuable survey of the city in the 18th century;
- Colonel Manoel da Gama Lobo d’Almada, cartographer like Chermont, later appointed governor of the Captaincy of São José do Rio Negro, and the greatest administrator of the Amazon in the colonial period.
The sacrifices endured by these European specialists were described by someone who could truly measure them: José Cândido de Melo Carvalho, ethnologist and zoologist, in his book Philosophical Journey through the Captaincies of Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso, and Cuiabá – A Synthesis on its Bicentennial.
He states that those who entered the Amazon in the 1700s, like these technicians, faced intense sun and heat, hunger, dangerous ascents and descents of waterfalls, deluge-like rains, fever chills, bites from mosquitoes, gnats, blackflies, horseflies, bullet ants, fire ants, attacks from candirus, and blood-sucking bats.
These ordeals caused continuous illness to some members of the boundary commissions. Schwebel suffered chest pains and coughed up blood. Another technician, Adam Leopold von Breuning, was unable to participate in his commission’s work at all.
Nevertheless, school textbooks—most published in São Paulo and Rio de Janeiro—attribute the expansion of national territory to the search for gold and the capture and enslavement of Indigenous people in the interior by expeditions led by bandeirantes from São Paulo.
Sadly, the young people of Pará who study these books believe this.
*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist
(Illustration: Brazil’s extent according to the Treaty of Tordesillas)
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