Cartório fantasma, escrituras falsas e R$ 183 mil em propina para “legalizar” terras de papel : procurador Bruno Valente, do MPF, detalha esquema nas alegações finais do processo à Justiça Federal
O procurador da República no Pará, Bruno Soares Valente, pediu à Justiça Federal a condenação da ex-tabeliã Maria do Socorro Puga de Oliveira Santos, do ex-interventor do cartório do Acará, Francisco Valdete Rosa do Carmo e do corretor de imóveis Saulo Sales Figueira. Os três foram investigados e denunciados por participação em um esquema de falsificação de documentos destinado a beneficiar e legitimar terras utilizadas pela empresa Agropalma, maior produtora e exportadora de óleo de palma no país. As terras, de acordo com vasta documentação anexadas em processos administrativos que tramitam no Instituto de Terras do Pará (Iterpa), pertencem à família Tabaranã.
Segundo a denúncia, já em fase final de processo que tramita na 4ª Vara Federal de Belém e cuja manifestação o Ver-o-Fato teve acesso exclusivo, Socorro, Valdete e Saulo agiram em conluio para fraudar registros públicos, configurando crimes previstos nos artigos 297 e 299 do Código Penal, em concurso material. O MPF baseia-se em relatórios da Polícia Civil, da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-PA), em laudos periciais e em apurações do Ministério Público do Estado, além de investigações da Polícia Federal.
De acordo com o processo, a fraude foi possível graças à utilização de um cartório fictício, denominado “Oliveira Santos”. Embora a ex-tabeliã Maria do Socorro tivesse sido afastada em 2005 sob acusação de incineração criminosa e subtração de livros de registros, ela continuou a assinar documentos em 2006, todos forjados.
Esses documentos falsos eram retirados em seu apartamento em Belém e entregues a dirigentes da Agropalma. Com eles em mãos, os executivos se dirigiam ao Cartório Diniz, também em Belém, onde eram lavradas escrituras públicas de compra e venda, dando aparência de legalidade aos imóveis rurais.
O procurador Bruno Valente destacou a participação direta de dirigentes da Agropalma. O ex-diretor Antônio Pereira da Silva, falecido em 2019, era quem conduzia o processo de “regularização”, enquanto o ex-presidente José Hilário Rodrigues de Freitas acompanhava pessoalmente as tratativas. Para Valente, havia “um liame inequívoco entre a produção dos documentos falsos e o proveito obtido pela empresa”.
A falsificação foi reconhecida em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Agrário, que resultou no cancelamento das matrículas de fazendas registradas com base nesses documentos, como a Fazenda Roda de Fogo e as Fazendas Castanheiras I e II e outras dezenas de áreas que, somadas, ultrapassam 60 mil hectares entre os municípios do Acará, Moju e Tailândia.
Restauração fraudulenta e movimentação financeira
Na segunda etapa do esquema, os dirigentes da Agropalma recorreram ao ex-interventor Francisco Valdete Rosa do Carmo, que restaurou matrículas imobiliárias mesmo tendo ciência da origem fraudulenta dos documentos. O MPF aponta que ele recebeu R$ 183 mil pela operação, valor comprovado pela quebra de sigilo bancário e por e-mails apreendidos na Operação Apate, da Polícia Federal.
Além das restaurações, Valdete também expediu uma certidão vintenária referente à matrícula nº 519, que permitiu à Agropalma abrir 12 novas matrículas no cartório de Tailândia. O objetivo, segundo a acusação, era burlar o bloqueio judicial das terras e dar aparência de legalidade à posse da área conhecida como Fazenda Porto Alto.
Reconhecimento da fraude e reflexos judiciais
As irregularidades já foram reconhecidas em diferentes instâncias da Justiça. O Tribunal de Justiça do Pará, em decisão do então juiz da Vara Agrária de Castanhal, André Luiz Filo-Creão Garcia da Fonseca, confirmou o vício na origem das propriedades e determinou o cancelamento das novas matrículas criadas em Tailândia. Ano passado, porém, em uma decisão que provocou polêmica, a desembargadora Ezilda Pastana mandou restaurar as matrículas.
O MP paraense recorreu e a questão aguarda agora decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Para o MPF, as provas são suficientes para condenar os réus pelos crimes de falsificação de documento público e uso de documento falso, em conluio com a empresa Agropalma e seus antigos dirigentes. A manifestação final do órgão reforça que o esquema se valeu de uma estrutura de corrupção cartorial para sustentar um dos maiores casos de fraude fundiária já revelados no Pará.
O Ver-o-Fato tentou contato com a Agropalma, mas sem sucesso. O espaço está aberto à manifestação do grupo empresarial ao qual ela pertence. No processo, os advogados da empresa alegam inocência.
Linha do tempo da fraude fundiária
2005 – Afastamento da tabeliã
- Maria do Socorro Puga de Oliveira Santos é destituída da função de tabeliã do Cartório do Único Ofício de Acará.
- Motivo: acusação de incineração criminosa e subtração de livros de registros cartorários.
2006 – Nascimento do cartório fantasma
- Mesmo afastada, Maria do Socorro continua a assinar documentos como se ainda fosse tabeliã.
- Surge o cartório fictício “Oliveira Santos”, que funcionava, na verdade, em seu apartamento em Belém.
- Documentos falsos passam a ser produzidos para beneficiar a Agropalma.
2006–2007 – Primeiras escrituras falsas
- Os papéis fraudulentos são entregues ao então diretor Antônio Pereira da Silva e acompanhados pelo presidente José Hilário Rodrigues de Freitas.
- A documentação é usada no Cartório Diniz, em Belém, para lavrar escrituras públicas de compra e venda de imóveis rurais, criando aparência de legalidade.
2018 – Primeira ação civil pública
- A Promotoria de Justiça Agrária (MPPA) ajuíza a ACP nº 0803639-54.2018.8.14.0015, julgada na Vara Agrária de Castanhal.
- Justiça reconhece a falsidade das escrituras lavradas com documentos do cartório fictício.
- São canceladas as matrículas de fazendas como Roda de Fogo e Castanheiras I e II.
2019–2020 – A restauração das matrículas
- Dirigentes da Agropalma recorrem ao ex-interventor do cartório de Acará, Francisco Valdete Rosa do Carmo, para restaurar matrículas canceladas.
- Ele recebe R$ 183 mil pela operação, valor comprovado pela quebra de sigilo bancário e e-mails internos da empresa.
- Valdete também expede certidão vintenária da matrícula nº 519, permitindo a abertura de 12 novas matrículas no cartório de Tailândia.
2020 – Nova ação civil pública
- O MP ajuíza a ACP nº 0801353-35.2020.8.14.0015, também em Castanhal.
- Denúncia revela vício na origem da matrícula nº 519, usada como base para as novas áreas.
- O Tribunal de Justiça do Pará confirma a fraude e determina o cancelamento das 12 matrículas criadas em Tailândia.
2021 – Operação Apate
- A Polícia Federal deflagra operação que alcança a Agropalma e cartorários envolvidos.
- E-mails internos da empresa e movimentações financeiras reforçam a acusação de fraude.
2022–2023 – Ações penais
- O MPF denuncia Maria do Socorro Puga de Oliveira Santos, Francisco Valdete Rosa do Carmo e Saulo Sales Figueira (sobrinho de Jairo Mendes Sales) por falsificação de documento público e uso de documento falso.
- Saulo é apontado como operador das tratativas entre os cartorários e os dirigentes da Agropalma.
2023–2025 – Reconhecimento judicial e recurso
- A Vara Agrária e o TJPA reconhecem a nulidade das matrículas fraudulentas.
- O processo sobe para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde aguarda decisão definitiva.
- O MPF, por meio do procurador Bruno Soares Valente, apresenta alegações finais pedindo a condenação dos réus e classificando o caso como “um esquema sistemático de falsificação e corrupção cartorial”.
LEIA AQUI A ÍNTEGRA DA MANIFESTAÇÃO DO PROCURADOR DA REPÚBLICA:
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