Um áudio de 11 de novembro de 2022, divulgado nesta quinta-feira (4) pelo ex-chefe da Assessoria de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Eduardo Tagliaferro, revela bastidores preocupantes da relação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Justiça Eleitoral.
Tagliaferro, que tem cidadania italiana, saiu do Brasil se dizendo perseguido pelo ministro, mas na última terça-feira, 2 prestou por videoconferência um depoimento bombástico à Comissão de Segurança do Senado, expondo as entranhas da relação dele e de outros auxiliares do ministro do STF, Alexandre de Moraes, que à época presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Na gravação, o juiz Airton Vieira — auxiliar do ministro Alexandre de Moraes no STF — admite que recorreu a “atalhos informais” para obter relatórios sobre críticos da Corte durante as eleições. A revelação foi publicada pelo jornalista Edilson Salgueiro, da Revista Oeste.
No diálogo, Vieira reconhece as dificuldades de formalizar tais pedidos sem deixar exposta a irregularidade do trâmite. Ele chega a afirmar:
“Não tenho como, formalmente, se alguém for questionar… Vai ficar uma coisa muito descarada. Como o juiz instrutor lá do Supremo manda para alguém lotado no TSE, e esse alguém, sem mais nem menos, obedece, manda um relatório.”
O magistrado admite ainda que a ligação direta entre gabinetes era facilitada pelo “mínimo múltiplo comum na pessoa do ministro [Moraes]”, mas ressalta que, em caso de questionamentos, o canal paralelo levantaria suspeitas.
O que o áudio revela
Segundo a reportagem da Revista Oeste, a gravação sugere a existência de uma rede de cooperação informal entre auxiliares do STF e do TSE, em que regras processuais teriam sido flexibilizadas para atender às demandas do gabinete de Moraes.
Juristas consultados pela publicação destacam que a fala de Vieira demonstra consciência da irregularidade e um esforço deliberado para mascarar pedidos que, pela via legal, não poderiam ser realizados.
O episódio está inserido no contexto de 2022, quando o TSE e o STF endureceram ações contra empresários, jornalistas e políticos acusados de disseminar desinformação e incitar atos antidemocráticos. Tagliaferro, que hoje tornou público o áudio, era o responsável por relatórios que embasaram medidas como buscas e apreensões autorizadas pelo Supremo.
O rito que deveria ter sido seguido
O fluxo legal prevê um trâmite muito mais rigoroso:
- o pedido deve partir do ministro relator do STF, nunca de um assessor diretamente a servidores de outro tribunal;
- precisa ser feito por ofício formal, endereçado à Presidência ou Corregedoria do TSE, ou a um ministro relator;
- exige identificação do processo, justificativa legal e eventual sigilo;
- deve ser protocolado em ambos os tribunais, garantindo rastreabilidade;
- a resposta só pode ser expedida por autoridade competente do TSE.
Ou seja, os “atalhos” citados pelo juiz auxiliar de Moraes representariam uma burla à cadeia de custódia e à legalidade processual.
Consequências políticas e jurídicas
A revelação aumenta a pressão sobre o ministro Alexandre de Moraes, já que seu assessor reconhece que os pedidos poderiam ser considerados ilegais se tramitassem de forma oficial.
Segundo a Revista Oeste, parlamentares da oposição pretendem usar o áudio como munição política, tanto para reforçar acusações de abuso de autoridade quanto para levar a discussão a organismos internacionais.
O conteúdo do áudio é grave porque expõe, de forma direta, a admissão de que mecanismos informais foram utilizados para burlar ritos processuais essenciais à transparência e à legalidade. Mais do que uma questão burocrática, trata-se de possível abuso de poder e desrespeito à separação entre instâncias do Judiciário.
Se confirmada a prática, o episódio pode configurar não apenas irregularidade administrativa, mas também violação a garantias fundamentais de qualquer Estado de Direito. A repercussão política, nesse contexto, é inevitável e tende a acentuar o debate sobre os limites de atuação do STF e do TSE no processo eleitoral de 2022.
OUÇA O QUE DIZ O JUIZ
Depoimento na Comissão de Segurança do Senado
Matéria da Folha de São Paulo de quarta-feira, 3, diz que o ex-assessor de Alexandre de Moraes, Eduardo Tagliaferro, afirmou que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) forjou relatórios para justificar uma operação contra empresários bolsonaristas por mensagens de teor golpista, em agosto de 2022. Veja a reportagem, abaixo:
“Como revelou a Folha, a ação da Polícia Federal à época teve como único embasamento uma reportagem do portal Metrópoles. Quando o sigilo da operação foi suspenso, porém, havia nos autos um relatório como base da decisão do ministro. Em audiência na Comissão de Segurança Pública do Senado Federal nesta terça-feira (2), Tagliaferro, que chefiou a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral, apresentou prints e documentos que demonstrariam que o ministro sequer tinha acesso, à época, às mensagens dos empresários.
O ex-assessor diz que o laudo técnico que embasou aquela operação, que seria datado do dia 22 de agosto de 2022, um dia antes da operação, foi produzido no dia 28 daquele mês, seis dias depois, o que seria provado pelos metadados do documento.
A data, diz, foi fraudada para dar a impressão de que a operação autorizada por Moraes contra os empresários bolsonaristas não havia se baseado apenas na reportagem.
Em nota, o ministro do STF negou irregularidade, não se manifestou diretamente sobre a acusação de fraude, mas afirmou que todas as ações nessa e nas outras investigações foram oficiais, regulares e com informe à Procuradoria-Geral da República.
As conversas entre os empresários no grupo, reveladas pelo site Metrópoles, traziam afirmações como a do empresário José Koury, do Barra World Shopping, que dizia preferir um golpe à volta do PT e que “ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil” caso o país vire uma ditadura. Os empresários negaram qualquer intenção golpista nos diálogos privados.
Nesta terça, Tagliaferro disse que os laudos foram elaborados por ele mesmo a pedido do gabinete do ministro, após a operação.
Uma série de reportagens da Folha mostrou em agosto do ano passado, com base em conversas de Tagliaferro, que, nas investigações do inquérito das fake news, Moraes agiu fora do rito, adotando atitudes que, em um processo normal, são atribuições da Polícia Federal (o órgão que investiga) e da Procuradoria-Geral da República (o órgão que faz a acusação).
As reportagens mostraram que o gabinete de Moraes ordenou por mensagens e de forma não oficial a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio ministro contra bolsonaristas no inquérito no Supremo Tribunal Federal durante e após as eleições de 2022.
Diálogos aos quais a reportagem teve acesso mostram como o setor de combate à desinformação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido à época por Moraes, foi usado como um braço investigativo do gabinete do ministro no Supremo.
A Folha teve acesso a mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp por auxiliares de Moraes, entre eles Tagliaferro e o seu principal assessor no STF, o juiz instrutor Airton Vieira.
A sessão desta terça foi comandada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e foi realizada ao mesmo tempo do primeiro dia do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da trama golpista durante o governo Bolsonaro.
Flávio afirmou que vai enviar toda a documentação ao presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, e que vai pedir que ele suspenda o julgamento.
Ele também afirmou que irá encaminhar essas informações ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que promove um tarifaço contra o Brasil em pressão contra o julgamento do ex-presidente.
Também na sessão, Tagliaferro disse que o atual procurador-geral da República, Paulo Gonet, atuou ao lado de Moraes fora do rito processual correto nas investigações que têm como alvo bolsonaristas.
A resposta de Moraes
Na resposta à Folha, o gabinete de Moraes negou ação fora do rito, dizendo que “diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao TSE, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições”.
O gabinete diz que os relatórios descreviam as postagens ilícitas de maneira objetiva e que “todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”.
O gabinete diz ainda que no caso citado por Tagliaferro, o procedimento foi idêntico. “Após a decisão do Ministro relator, em 19 de agosto, foi solicitado relatório para o TSE, que foi juntado aos autos no dia 29 de agosto, tendo sido dada vista imediata às partes.”
O ex-assessor do TSE apresentou ainda nesta terça prints de conversas de aplicativo de celular que, segundo ele, se referem a conversas com Gonet (na época em que este era vice procurador-geral eleitoral, em 2022) e com um assessor, de nome Lucas.
Essas conversas provam, de acordo com Tagliaferro, a participação de Gonet em procedimentos que extrapolaram as regras jurídicas.
De acordo com os prints apresentados à comissão, Gonet, à época vice da PGE (Procuradoria-Geral Eleitoral), teria pedido a Tagliaferro uma lista de decisões sobre remoção de conteúdo nas redes.
“Se houver registro das [publicações] que foram mantidas, seria ainda melhor”, diz o então vice-PGE.
Pouco depois, o assessor teria enviado uma planilha e dito: “Levantamos os processos, agora vamos pegar as decisões para o senhor”.
Em outro print, Lucas (que seria secretário-executivo da PGE à época) envia uma mensagem a Tagliaferro a pedido de Gonet para falar “sobre um assunto que o Dr. Paulo tratou com o Ministro Alexandre [de Moraes] hoje mais cedo”. À época, Moraes era presidente do TSE.
As trocas entre os dois assessores, segundo os prints, seguiram até março de 2023. Na sessão transmitida pelo Senado, Tagliaferro chegou a exibir para a câmara o número de telefone de Gonet.
A assessoria do procurador não se manifestou até a publicação deste texto, assim como a assessoria do ministro, que relata o julgamento de Bolsonaro nesta terça”.
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