Sob Lula, comércio de diesel russo dispara no Brasil

Importações crescem mais de 700% em 2024 com utilização de “frota fantasma” russa. Táticas de ocultação e lacunas regulatórias expõem terminais e o país a potenciais sanções internacionais e desastres ambientais

Brasília – Em um movimento que desafia sanções internacionais e levanta questões sobre segurança e diplomacia, o Brasil emergiu como um destino essencial para a chamada “frota fantasma” de navios-tanque russos que transportam diesel combustível. Desde 2022, o ano da invasão da Ucrânia pela Rússia, essas embarcações têm sido a principal via de abastecimento de combustível russo para o país, operando em um fluxo contínuo apesar das restrições econômicas impostas por nações como Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia. Uma investigação aprofundada da BBC News Brasil, corroborada por análises de especialistas externos, detalha a extensão dessa operação e os potenciais riscos ambientais, econômicos e diplomáticos que ela acarreta.

A gênese da “frota fantasma” russa e suas táticas de ocultação
A “frota fantasma” não é um fenômeno espontâneo, mas sim uma estratégia articulada da Rússia para contornar as sanções impostas por potências ocidentais. Após o G7 (Grupo com os sete países mais ricos do Mundo) estabelecer um teto de preço de US$ 60 por barril de petróleo russo e a Europa restringir suas compras, a Rússia buscou novos mercados e clientes dispostos a ignorar as sanções, como Brasil, Índia, Turquia e China.

Especialistas como Benjamin Schmitt, pesquisador da Universidade da Pensilvânia, e Alexander Turra, professor do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo, explicam que essa frota, composta por cerca de 500 a 600 petroleiros adquiridos desde 2022, muitos deles em condições precárias e sem seguros adequados, utiliza uma série de manobras para operar nas sombras.

Entre as táticas mais comuns estão o uso de “bandeiras de conveniência”, que consistem em registrar os navios em países remotos ou com pouca fiscalização para dificultar o rastreamento dos verdadeiros proprietários. Além disso, a criação de empresas de fachada em paraísos fiscais e a constante mudança de propriedade são artifícios para obscurecer a cadeia de responsabilidade. No entanto, a manobra mais preocupante é a navegação com o Sistema Automático de Identificação (AIS) desligado. Este sistema, vital para a segurança marítima e o monitoramento global de embarcações, é desativado para ocultar as rotas e as operações, configurando um forte indicativo de irregularidade e aumentando exponencialmente os riscos de colisões e acidentes em alto-mar, conforme enfatizado por Alexander Turra.

Brasil: Um “Porto Seguro” no cenário global de sanções
A não adesão do Brasil às sanções internacionais contra o combustível russo consolidou o país como um “porto seguro” para a frota de Putin. A investigação identificou 36 navios da “frota fantasma” operando na costa brasileira, responsáveis por transportar 17% de todo o combustível russo importado pelo Brasil no período analisado, entre fevereiro de 2022 e junho de 2025.

Dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) revelam que, dos 237 navios que transportaram combustível da Rússia para o Brasil nesse período, 36 constavam nas listas de sanções de Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido.

O aumento do volume de importações de diesel russo pelo Brasil tem sido vertiginoso. Em 2022, o valor importado foi de US$ 100 milhões, saltando para US$ 4,5 bilhões em 2023, e atingindo um pico de US$ 5,4 bilhões em 2024. Até julho de 2025, as importações já somavam US$ 3,07 bilhões, tornando a Rússia o principal fornecedor de diesel importado pelo Brasil, respondendo por aproximadamente 60% do total. Mais especificamente, em 2024, o Brasil importou mais de US$ 8,3 bilhões em óleo diesel, com 65% desse volume vindo da Rússia.

A Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) registrou, nos primeiros meses de 2024, um aumento superior a 700% nas importações de diesel russo em comparação com o mesmo período do ano anterior.

Navios “fantasmas” russos abastecem o Brasil com combustível
Este cenário tem raízes tanto econômicas quanto políticas. A busca por alternativas para garantir o suprimento de diesel a preços competitivos foi um objetivo central. Durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), houve uma atuação direta para importar diesel russo, visando o controle de preços e a garantia de abastecimento. Posteriormente, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também manteve laços diplomáticos com a Rússia, reconhecendo a importância do diesel russo para a segurança energética nacional.

Casos emblemáticos e os riscos latentes da operação
Os portos de Paranaguá (PR) e Santos (SP), entre os maiores do Brasil, foram os principais receptores desses carregamentos. Embora a maioria das atracações tenha ocorrido antes da imposição formal das sanções, pelo menos seis navios, já sancionados internacionalmente, conseguiram desembarcar combustíveis em terminais brasileiros.

Um exemplo notório é o do navio Manta, que serve como um “estudo de caso” da “frota fantasma”. Sancionado pela União Europeia em maio de 2025 sob alegação de “navegação irregular ou de alto risco”, o Manta aportou em julho no Porto de Suape, em Pernambuco, transportando óleo diesel da Rússia.

Documentos da Antaq revelam que a embarcação trocou de nome (de High Strength para Manta) e de bandeira seis vezes entre 2022 e 2025. Mais alarmante, o relatório da Antaq indicou que o AIS do navio esteve desativado desde 27 de junho de 2025. A propriedade do Manta foi rastreada até a Soft Breeze Navigation Corp., registrada nas Ilhas Seychelles, um conhecido paraíso fiscal, cujo endereço coincide com o de outro navio sancionado, o Bonifacy, sugerindo uma rede interconectada de propriedades obscuras. Outros navios sancionados que atracaram no Brasil incluem o NS Pride (rebatizado Prosperity), Guru, Agni, Sauri, Flora 1 e Jun Ma.

Os riscos associados a essas operações são multifacetados
Do ponto de vista ambiental, navios mais antigos, sem os seguros adequados e operando com AIS desligado aumentam significativamente a probabilidade de acidentes e vazamentos, dificultando a identificação e responsabilização em caso de desastres ambientais de grandes proporções.

Diplomaticamente e economicamente, especialistas alertam que empresas brasileiras que negociam com a “frota fantasma” podem ser vistas como financiadoras indiretas da ação militar russa sobre a Ucrânia e, consequentemente, tornarem-se alvo de sanções secundárias por parte de países como os Estados Unidos e a União Europeia, mesmo que, legalmente, os terminais brasileiros não violem normas domésticas, dada a autonomia do Brasil para não aderir a sanções internacionais. Navios ‘Fantasmas’ Russos Abastecem o Brasil com Combustível: Implicações e Desafios.

A aplicação dessas sanções são um risco real ao Brasil, especialmente por parte do governo do presidente norte-americano Donald Trump, o que deve ocorrer como retaliação a quase certa condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro — aliado de Trump —, em julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal, com previsão de sentença final a ser conhecida na próxima sexta-feira (12).

O posicionamento das autoridades brasileiras
As autoridades brasileiras, incluindo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), a Marinha do Brasil e a Polícia Federal, declararam à BBC News Brasil que não receberam qualquer orientação formal ou diretriz específica para restringir ou impedir a atracação de navios sancionados.

A Marinha, embora adote mecanismos de identificação e monitoramento da “frota fantasma”, informou não ter recebido instruções para impedir sua atracação. As autoridades portuárias, como a do Porto de Santos, justificam que não possuem competência legal unilateral para impedir a operação de navios com base em sanções internacionais sem uma determinação doméstica clara. Essa postura reflete uma lacuna regulatória que, se por um lado garante a autonomia nacional, por outro, expõe o país e suas empresas a riscos internacionais crescentes.

O cenário delineado pela investigação da BBC News Brasil, enriquecido por dados verificados por conta própria pelo Ver-o-Fato, revela um complexo dilema para o Brasil. A importação de combustível russo por meio da “frota fantasma” representa uma aparente vantagem econômica, oferecendo suprimento a preços mais competitivos em um mercado global instável.

Essa busca por segurança energética e controle inflacionário, objetivos compartilhados por diferentes governos brasileiros, materializa-se em uma “realpolitik” energética que prioriza o pragmatismo comercial. Contudo, essa estratégia não está isenta de severos riscos.

Ambientalmente, a operação de navios sub-padrão, com táticas de ocultação, eleva a probabilidade de acidentes ecológicos com consequências catastróficas e dificuldade quase intransponível de responsabilização.

Diplomaticamente, a postura de neutralidade e a não adesão às sanções, embora um direito soberano, expõem o Brasil e suas empresas a potenciais sanções secundárias por parte de nações que buscam isolar a economia russa. Tal dicotomia entre benefício econômico imediato e vulnerabilidade estratégica de longo prazo exige uma análise crítica e aprofundada por parte das autoridades e do setor privado.

A ausência de diretrizes claras do governo brasileiro para suas agências reguladoras e portos em relação à “frota fantasma” sugere uma política de “vista grossa” que permite a continuidade dessas operações sob o amparo da legalidade doméstica, mas com implicações externas cada vez mais evidentes.

A situação, em sua intrínseca complexidade, ilustra o delicado equilíbrio que o Brasil busca entre a manutenção de suas relações comerciais e diplomáticas globais e a navegação pelas águas turbulentas de um cenário geopolítico em constante transformação.

Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.

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