Itamar Vieira Júnior e Aurora Fornoni Bernardini – Cédito: Fotomontagem/reprodução
Crítica literária da USP diz que Torto Arado não é literatura, o que significa dizer que
não tem legitimidade para formar as gerações presentes e futuras. Isso é muito grave.
Por Francisco Neto Pereira Pinto
Em entrevista à Folha de São Paulo, de 30 de agosto de 2025, a crítica literária Aurora
Fornoni Bernardini, professora aposentada da Universidade de São Paulo, afirmou que o
livro Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, é apaixonante, insólito e original em seu
conteúdo; que o autor não tem estilo particular e, por isso, pode até ser interessante,
mas que não é literatura.
Bernardini, nesse caso, está retomando um posicionamento de outra crítica literária,
também professora da USP, Walnice Nogueira Galvão, em artigo do dia 24 de maio de
2025, Folha de São Paulo, no qual afirma que, na literatura brasileira de hoje, o
conteúdo predomina sobre a forma, o que, para ela, implica em essa literatura pender
mais para o lado do entretenimento do que para o da arte. O comentário de Galvão tem
como ponto de partida a lista dos melhores livros deste século 21, publicada na mesma
edição da Folha do dia 24 de maio de 2025, na qual Torto Arado figura em segundo
lugar.
A velha controvérsia sobre ser ou não ser literatura
Quando Bernardini disse que Itamar não é literatura, a reação que se viu dos leitores,
sobretudo nas redes sociais, foi a de posicionamento contra ou a favor da crítica
uspiana, como se essas fossem apenas as duas opções possíveis. Porém, a questão
colocada do é ou não é se coloca como ilusória. Faltou, por parte da Folha e também da
própria Bernardini, explicitar a que literatura ela estava se referindo. Não resta dúvida
de que a crítica se referia ao que se costuma chamar de Altas literaturas, para utilizar o
vocabulário de outra uspiana, Leyla Perrone-Moisés – título de um livro seu, que
também já manifestou posicionamento parecido ao das colegas críticas.
O fato é que, para críticos alinhados a essa postura, em literatura o mais importante não
é o que se diz, mas como se diz — é o trabalho feito com a linguagem, levando-a, na
medida do possível, ao seu grau máximo de expressividade. O artista deve privilegiar a
busca pelo novo, a experimentação da linguagem e dos gêneros e o diálogo com a
tradição, buscando causar no leitor a surpresa suficiente para alimentar a fruição, como
diria Roland Barthes, em seu texto O prazer do texto. Veja-se, nesse caso, que o que
alimenta o interesse desses leitores críticos é, como diria João Cabral de Melo Neto, a
forja do ferro forjado corpo a corpo, e não a do ferro fundido, moldado sem luta. Ou
seja, privilegia-se a forma sobre o conteúdo.
Agora, é bom sublinhar que, para esses críticos, como aponta Marisa Lajolo, em seu
livro Literatura: ontem, hoje, amanhã, o universo deles, embora imenso, tem fronteiras
bastante limitadas, e o que não se enquadra em seus critérios é visto como pior — como
não literatura — e geralmente acreditam sempre ter razão e se consideram, não raro, os
donos da verdade.
O juízo estético é apenas isso — um juízo
Importante ter em mente que um juízo estético não se baseia em critérios objetivos,
como outras áreas científicas, mas nem por isso são menos importantes. O fato é que,
como já ensaiava Immanuel Kant, em sua Crítica da faculdade do juízo, o ajuizamento
de uma obra de arte é, primeiramente, subjetivo e, depois, reflexivo — o que significa
dizer que, em um primeiro momento, o crítico julga determinada obra como literária ou
não e, depois, justifica seu posicionamento, apresentando suas razões. Esse juízo
somente se firma por consenso, por adesão dos outros. Como já disse o crítico Luiz
Costa Lima, no livro A literatura e o leitor, o consenso não se impõe por si só — são
certas instâncias e instituições que o confirmam ou não.
Não é por acaso que a professora e pesquisadora Márcia Abreu, em seu Cultura letrada,
afirma que a questão do valor, do juízo estético, tem pouco a ver com o texto literário
em si e muito com posições políticas e sociais, que lhe são exteriores. Dito de modo
simples, o juízo de Bernardini é apenas isso — um julgamento, muito respeitado, é
claro, mas com validade apenas em um universo muito pequeno. Não é de graça que a
entrevista a apresenta logo no alto da página como tradutora e professora da USP,
fazendo apelo à autoridade da instituição que, como se sabe, é considerada a melhor da
América Latina. Interessante que a Folha apenas faz menção à sigla da instituição,
pressupondo, é claro, que todos saibam de que instituição se trata.
É assim que se firma o juízo: pelo poder que certas pessoas, instâncias e instituições têm
de dizer o que é ou não é literatura. Porém, Bernardini e Galvão representam apenas
uma palavra — não a última — em matéria de juízo estético. Por exemplo, Eduardo
Cesar Maia, ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco, em artigo de
3 de setembro de 2025, na Folha de São Paulo, abre divergência, afirmando que
ninguém pode determinar definitivamente o que um conceito histórico, como o de
literatura, é, foi ou será.
Itamar Vieira Júnior é sim literatura
Além do mais, Itamar Vieira Júnior já ganhou dois prêmios Jabuti na categoria romance
literário — uma honraria legitimadora do seu caráter literário — além de seu Torto
Arado ter sido considerado, por um júri de cem especialistas reunido pela própria Folha
de São Paulo, como o segundo melhor livro de literatura brasileira do século 21.
Fica claro que o julgamento de Bernardini não alcança consenso e não é universal, mas,
se levado a sério, pode ter consequências devastadoras: nega cidadania literária a Itamar
Vieira Júnior, o que significa dizer que suas obras não têm legitimidade para serem
inseridas no rol daquelas dignas de fazer parte da formação das gerações presentes e
futuras, e isso é muito grave.
Por essas e outras razões, é importante que se diga: Itamar é, sim, literatura — porque
assim o proclamam muitas instâncias, instituições, inclusive as escolas, e leitores,
críticos ou não.
Francisco Neto Pereira Pinto é psicanalista, professor e escritor. Doutor em Letras.
Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da
Universidade Federal do Norte do Tocantins. Autor de À beira do Araguaia.
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