Senado discute criação de duas novas Unidades de Conservação no Pará

Audiência na Comissão de Agricultura expõe tensões sobre o impacto de UCs na viabilidade de projetos como o Pedral do Lourenço e a Hidrovia Araguaia-Tocantins

Brasília – O Senado Federal, por meio da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), tornou-se palco de um intenso debate nesta quarta-feira (10), centrando-se na criação de duas novas Unidades de Conservação (UCs) no Pará – as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) do Paleocanal do Rio Tocantins e do Bico do Papagaio. Senadores temem engessamento de projetos logísticos como o Derrocamento do Pedral do Lourenço e a viabilidade da Hidrovia Araguaia-Tocantins.

A audiência pública, requisitada pelo senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), presidente da CRA, revelou profundas preocupações de líderes políticos e representantes locais sobre o potencial impacto dessas novas áreas na viabilidade de obras de infraestrutura estratégicas para o desenvolvimento logístico e econômico da região amazônica, acendendo o alerta para o complexo equilíbrio entre a necessária proteção ambiental e o imperativo do progresso.

Desenvolvimento sob escrutínio público
A discussão no Senado reflete um dilema persistente na agenda nacional: como conciliar a rica biodiversidade brasileira, especialmente na Amazônia, com as demandas por crescimento econômico e infraestrutura.

O Pará, estado que já detém 91 áreas protegidas – abrangendo 34% de seu território com 52 unidades federais, 27 estaduais e 12 municipais –, se vê novamente no centro dessa polarização com a proposta de mais duas APAs (Áreas de Proteção Ambiental). Juntas, as Áreas de Proteção Ambiental do Paleocanal do Rio Tocantins e do Bico do Papagaio somam quase 145 mil hectares, uma extensão equivalente a 207 mil campos de futebol, e impactam diretamente os municípios paraenses de Marabá, Nova Ipixuna, Itupiranga, Bom Jesus do Tocantins e São João do Araguaia, no Sudeste do Estado, além de partes dos estados do Maranhão e Tocantins.

As Áreas de Proteção Ambiental (APAs) são uma categoria de Unidade de Conservação de uso sustentável, o que significa que, embora visem proteger a biodiversidade, permitem a presença de populações humanas e a exploração sustentável de recursos naturais.

Criadas por decreto, sua implementação passa por fases de consulta pública e, posteriormente, a formação de um Conselho Gestor. No contexto amazônico, a criação de APAs é frequentemente justificada pela necessidade de conter o desmatamento, proteger bacias hidrográficas e garantir a conservação de ecossistemas únicos, ao mesmo tempo em que se busca ordenar o uso e ocupação do solo. No entanto, o processo muitas vezes é lento e a fiscalização, desafiadora, gerando um passivo de áreas protegidas sem efetiva gestão, e não raro, engessando qualquer possibilidade de desenvolvimento nessas áreas.

O ‘nó’ da Infraestrutura
O cerne da apreensão manifestada na audiência reside na potencial interrupção de projetos infraestruturais vitais. O senador Zequinha Marinho, proponente da audiência, alertou veementemente: “Embora todos nós reconheçamos a importância da preservação ambiental, não podemos ignorar que essas propostas, da maneira como estão sendo apresentadas, levantam sérias dúvidas. A APA do Paleocanal, por exemplo, pode comprometer obras estratégicas para o nosso desenvolvimento, como o derrocamento do Pedral do Lourenço e a plena operação da hidrovia Araguaia-Tocantins”, alertou.

O “derrocamento do Pedral do Lourenço” refere-se a um ambicioso projeto de remoção de rochas submersas no rio Tocantins, visando eliminar um gargalo na navegação no período da estiagem amazônica.

Essa obra é crucial para a plena operacionalização da Hidrovia Araguaia-Tocantins, um corredor de transporte de grãos e minérios fundamental para o escoamento da produção agrícola e mineral do Centro-Oeste e Norte do país até os portos do Pará. A interrupção ou atraso desse projeto teria vastas repercussões econômicas, afetando o agronegócio e a competitividade brasileira no mercado internacional.

Risco jurídico
A coordenadora-geral de Criação e Planejamento de Unidades de Conservação do ICMBio, Kelen Leite, buscou tranquilizar os presentes ao afirmar que a APA do Paleocanal estaria fora da área do Pedral do Lourenço. Contudo, essa garantia não dissipou as preocupações. O prefeito de Marabá, Toni Cunha (PL), expressou seu temor de que a mera proximidade da APA com o Pedral possa servir de pretexto para ações judiciais que inviabilizem as obras: “No final do estudo da Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará) fizeram uma conexão infeliz, que inclusive atrapalha esse projeto, uma conexão com o derrocamento Pedral (do Lourenço). O Pedral não está imediatamente nesta APA, mas está muito próximo. Poderão falar que a hidrovia vai interferir no fim a que se destina a tal APA do Paleocanal e isso pode virar mote de intervenções na justiça federal, de ações do Ministério Público Federal tergiversando sobre esses estudos, muitas das vezes sem uma conexão lógica, mas que servem de fundamentos jurídicos”, anteviu o gestor.

A fala do prefeito aponta para a complexidade jurídica e a capacidade de órgãos como o Ministério Público Federal de questionar projetos com base em interpretações de estudos ambientais, mesmo que a conexão inicial pareça “ilógica” para alguns dos envolvidos. Essa incerteza jurídica é um fator significativo de risco para investidores e para o planejamento de longo prazo de grandes obras de infraestrutura. Há precedentes, é o mais notável é a total paralisação imposto pelo Ministério Público Federal na execução da Ferrovia Ferrogrão, projeto jogado às calendas da burocracia federal, sem qualquer solução.

A crítica à gestão das UCs existentes
Além das preocupações com a inviabilização de obras, a audiência trouxe à tona um problema crônico na gestão ambiental brasileira: a efetividade das unidades de conservação já existentes.

Marcelo Norkey, membro do Conselho Gestor da APA Triunfo do Xingu, foi categórico em sua crítica à proposta de novas criações: “Nós não cuidamos nem das que são criadas, por que criar novas unidades? O ICMBio não consegue cuidar das que já tem. Leva de 15 a 20 anos para criar um simples Conselho Gestor, que é o primeiro instrumento legal de gestão dessas unidades”, preveniu.

Essa declaração ressalta um gargalo administrativo e de recursos. A criação de uma UC é apenas o primeiro passo; a efetiva proteção do território e a garantia de sua função ambiental e social dependem da implementação de planos de manejo, da formação de conselhos gestores com participação da comunidade e da fiscalização contínua. A fragilidade na gestão das unidades existentes levanta a questão se a prioridade deveria ser a expansão territorial ou o fortalecimento e a consolidação do que já está estabelecido.

A base técnica e o processo de consulta pública
Distinto pela burocracia paralisante, e destacado por uma legislação ambiental além do exequível, o Estado brasileiro é pródigo quando o assunto é autosabotagem. Os estudos que fundamentaram a proposta das novas APAs foram elaborados pela Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudestedo Pará) e pela Fundação Casa de Cultura de Marabá. Segundo o ICMBio, esses estudos foram recebidos e tecnicamente validados. Este é um ponto crucial, pois a validade técnica dos estudos é a base para a legitimidade da criação das UCs.

Atualmente, as propostas estão em fase de consulta pública, um instrumento democrático que permite à sociedade manifestar-se, enviar sugestões e esclarecimentos. O prazo para essas manifestações se encerra no dia 15 deste mês, com os envios direcionados ao e-mail [email protected]. A consulta pública é vital para garantir a transparência e a participação social, embora, como visto, nem sempre consiga harmonizar interesses conflitantes.

O debate no Senado sobre as novas Unidades de Conservação no Pará personifica a tensão inerente entre a visão desenvolvimentista e a agenda ambiental no Brasil, especialmente em regiões de fronteira como a Amazônia. De um lado, a urgência de proteger biomas cruciais e mitigar os efeitos das mudanças climáticas. De outro, a pressão legítima por infraestrutura que possa alavancar o desenvolvimento econômico, gerar empregos e melhorar as condições de vida das populações locais.

As preocupações levantadas pelos representantes do Pará não se limitam à oposição à conservação, mas à forma como esta é implementada, aos estudos que a fundamentam e, sobretudo, à capacidade do Estado de gerir efetivamente o que já existe. A crítica sobre a demora na criação de conselhos gestores e a falta de recursos para a manutenção das UCs existentes sugere uma desconexão entre a política de criação de novas áreas protegidas e a realidade da sua implementação e fiscalização.

O risco de judicialização, apontado pelo prefeito de Marabá, ilustra a fragilidade de projetos de infraestrutura que dependem de um complexo arranjo legal e ambiental, onde interpretações de proximidade ou impacto podem gerar anos de paralisação. Este cenário não apenas onera o erário público, mas também atrasa o progresso de regiões carentes, criando um clima de incerteza jurídica que afugenta investimentos.

A audiência pública no Senado serve como um lembrete contundente de que a política ambiental não pode ser dissociada da política de desenvolvimento. Um caminho que busque equilibrar essas forças necessita de estudos técnicos robustos e imparciais, processos de consulta pública genuínos e, acima de tudo, um planejamento estratégico integrado que considere as necessidades de conservação sem inviabilizar o desenvolvimento sustentável. O desafio é transformar o embate atual em um diálogo construtivo, onde a proteção do meio ambiente e o progresso socioeconômico possam coexistir, e não se anular mutuamente, a bem do futuro da Amazônia brasileira.

* Reportagem: Val-André Mutran (Brasília-DF), especial para o Portal Ver-o-Fato.

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