Manual do refém moderno

A inteligência artificial chegou para “nos libertar”. Libertar de quê? Basicamente de pensar, escrever e, se bobear, até de sentir? Claro, sempre existe aquele grupo que torce o nariz para a novidade, como se fosse possível parar a roda da história. Quando surgiu a lâmpada, teve quem jurasse fidelidade eterna à lamparina.

Quando inventaram o carro, não faltou gente defendendo o cavalo como “meio de transporte mais saudável”? Quando o Uber apareceu, tinha passageiro que prometia morrer abraçado ao taxímetro. Pois é. E cá estamos: iluminados, motorizados e pedindo carro por aplicativo sem lembrar do discurso inflamado contra a tecnologia. A verdade é que é difícil não aderir.

E a IA? Essa já chegou chegando, no 12. A promessa era inocente: organizar tarefas, dar respostas rápidas, economizar tempo. A realidade: escreve mensagens de aniversário, compõe músicas, gera imagens, faz terapia, resolve exercícios de física e ainda discute relacionamento. Ela nunca se cansa, nunca pede aumento, nunca erra uma vírgula da ABNT (maldita ABNT, que fez gerações inteiras de estudantes chorarem diante do Word). É, de fato, o colega de grupo perfeito: faz tudo e não cobra nada. E nós, claro, deixamos.

Foi exatamente isso que ouvi ecoar num congresso na UFPA, numa sala sobre “Educação e Inteligência Artificial”. Um pesquisador, sem titubear, disse: “Logo escrever teses, TCC e artigos será coisa do passado. A IA fará isso. O papel do pesquisador será apenas construir os conceitos”. Disse com a mesma tranquilidade de quem comenta que amanhã pode chover.

E olha, eu entendo. É tentador imaginar um mundo em que ninguém mais precise virar madrugadas digitando com o olho tremendo de cansaço, brigando com notas de rodapé ou rezando para que a bibliografia não se perca no abismo da ABNT. Confesso: por dentro, aplaudi de pé.

Mas logo veio aquela pulga atrás da orelha: se a máquina escreve, e nós só pensamos os conceitos, quanto tempo até a própria máquina pensar também no lugar da gente? Porque, sejamos francos, sempre aparece alguém para dizer que pensar dá muito trabalho.

É aí que mora o perigo disfarçado de conforto. A IA é essa babá tecnológica que nos cobre à noite, arruma a cama, escreve a tese, passa o café e ainda sopra um “parabéns” no ouvido. E nós aceitamos felizes, como quem recebe uma massagem grátis. Só que, no fundo, não é um presente: é uma corrente invisível, daquelas que apertam devagar, sem a gente notar.

E aí surge a contradição mais deliciosa: todo mundo fala mal da IA. É ameaça à criatividade, é risco à autonomia, é dependência emocional. Mas ninguém larga. Porque é muito fácil posar de crítico da tecnologia… enquanto deixa a tecnologia escrever a própria crítica.

No fim, somos reféns voluntários. Não presos por correntes de ferro, mas por linhas de código. E, sejamos sinceros, não dá nem para reclamar: a cela tem wi-fi, café quentinho e a tese já vem formatada em ABNT.

The post Manual do refém moderno appeared first on Ver-o-Fato.