Um mártir da luta solitária contra a intolerância em Belém

Os paraenses convivem, hoje, pacificamente, com as demonstrações de sexualidade exuberante dadas por jovens e adultos em danças fortemente erotizadas, apresentadas em público.

Do mesmo modo como toleram espaços de anúncios de “companhias” e “amizades” em variados meios de comunicação onde, na verdade, são promovidos encontros sexuais pagos.

Isto porque, em nossa sociedade regional, houve, sem dúvida, nas últimas décadas, uma grande mudança no modo de encarar a sexualidade humana.

Para se constatar isto não é sequer necessário ter formação específica no campo da Sociologia.

Basta apelar para as próprias lembranças, no caso dos paraenses hoje sexagenários.

Porque estes paraenses viveram sua infância em anos que, comparados com os atuais, parecem medievais, do ponto de vista do comportamento social.

 No início da década de 60, do século passado, muitos dos paraenses católicos, como outros brasileiros, permaneciam dominados por uma religiosidade impregnada de grande rigidez moral e intolerância com quem cultivava crenças diferentes da suas.

Embora, naquele período, profundas transformações começassem a ocorrer dentro da Igreja Católica oficial, impulsionadas pelo Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII.

O ambiente de rigidez moral em que estávamos mergulhados contaminava até o interior do mundo católico.

Os padres não podiam andar nas ruas sem suas batinas, por maiores que fossem os incômodos provocados pelas altas temperaturas do Pará.

E, coitados deles, se viessem a se envolver afetivamente com suas paroquianas e, por esta razão, “abandonassem a batina” a fim de viver com uma delas.

Vida sexual plena antes do casamento era algo impensável para os jovens católicos. 

E, depois que casavam não podiam se separar, por mais que o relacionamento conjugal desandasse.

De divórcio nem se cogitava.

Mesmo o desquite era uma bandeira de poucos brasileiros vistos em geral com reprovação.

A mulher que se separava do marido carregava consigo uma espécie de maldição.

Além disto, como a população brasileira se via como inteiramente católica, quem praticava outros cultos religiosos incomodava.  

Um praticante de Candomblé era encarado como pessoa endemoniada.

Um espírita provocava galhofas por acreditar em reencarnação

Havia um jesuíta espanhol, Oscar Quevedo, que militava contra o Espiritismo, até nos títulos dos seus livros, onde punha em dúvida as crenças do espírita.

Título de uma de suas obras: “Há provas de que os mortos agem?”.

Título de outra: “Identificação dos mortos?”.

As pobres prostitutas eram consideradas como seres moralmente repulsivas.

Viviam confinadas numa área da cidade.

A da Rua Riachuelo e adjacências.

Naquela “rua do Pecado”, belenense de boa família jamais passava.

O medo social criado por tanta intolerância aparecia até em letras de música.

Como a que lançou o cantor Ari Lobo, com o título “Evolução”.

Cientistas soviéticos tinham cometido a heresia de tentar colocar um astronauta na Lua.

Na letra de “Evolução”, na verdade um hino à mentalidade atrasada, os seres humanos recebiam uma advertência quanto aos riscos que corriam com tamanha ousadia:

  “Nosso senhor deu ao homem um pouquinho de seu saber.

Já começou o abuso.

Tudo o homem quer fazer.

Já sabe o dia que chove, que faz sol e relampeia.

Vê nos ‘por dentro’ e ‘por fora’, cura, mata e faz crescer.

Agora que ir à Lua, sem nosso Pai conceber.

Doutor não mexa com a Lua, que o mundo pode acabar”.

 Naquela fase tão obscurantista, no bairro da Cidade Velha, em Belém, vivia Caetano Nunes Reis.

Seus gestos delicados e suas roupas sofisticadas o colocavam na mira do ódio dos belenenses impregnados daquela intolerância cultivada naquela época.

   Caetano lia muito.

Era poliglota.

Falava bem Inglês e Alemão.

Tornou-se professor do Colégio Paes de Carvalho e da universidade.

Depois fundou uma escola de Inglês para crianças, quando passou a usar o pseudônimo de Klaus Keller.

Num concurso nacional de cultura da TV Tupi, de São Paulo, ele se destacou, respondendo perguntas sobre um dos doutores da Igreja Católica.

O teólogo Santo Agostinho.

Nos finais de tarde, as crianças da Cidade Velha, o viam caminhar pelas ruas, solitária e silenciosamente.

Sem perder, porém, sua dignidade pessoal.

Que não era abalada nem mesmo pela pulseirinha de ouro que ele usava numa das pernas.

Um dia, contudo, os amigos de Caetano notaram que ele havia desaparecido, havia alguns dias.

O corpo dele foi encontrado no interior de sua casa, já em estado de putrefação.

Seu assassino nunca foi encontrado.

Caetano parecia ter sido esquecido pelos belenenses.

Mas, em 2008, Katiuscia de Sá escreveu um texto sobre ele.

Seu trabalho foi inserido no livro Oficina Escola de Escritores, uma publicação da Associação Cidade Velha.

Trecho do texto:

“Foi assim que viveu e morreu Caetano Klaus Keller Nunes Reis, num mundo forjado através de suas próprias escolhas.

E as escolhas frequentemente requerem a existência de um caráter forte e decidido.

E ele decidiu desde sempre o caminho que iria pisar”.

Três anos depois, em 2011, Caetano foi homenageado no blog de um amigo dele, o professor de Desenho Publicitário José Vasconcelos Paiva.

Com um belo depoimento, sobre aspectos humanos da história de Caetano, no qual ele foi tratado pelo seu pseudônimo Klaus Keller.

Trechos do que Paiva escreveu:

“Tive a felicidade de privar da amizade deste grande poliglota.

Vou escrever alguns artigos lembrando meus contatos e visitas à sua casa

A homossexualidade de Klaus era muito pública e ele era visto como um bicho raro.

Ele gostava de orquídeas, de papoulas.

Tinha um pavão, o Denner,

E mantinha nos fundos de sua casa sua escolinha de idiomas.

Um grande barracão que, em eventos especiais, ele decorava maravilhosamente.

Klaus tinha um gosto um pouco exagerado por flores de plástico.

Na escadaria que dava acesso à sua casa, colocava arranjos enormes de variados tipos de flores artificiais, coisa de 1,5m de altura.

Sua casa possuía um pé direito muito grande, uns 5 metros.

Ele gostava de manter sempre pétalas de rosas naturais num pires, para passar nas mãos e também nas dos amigos.

Klaus tinha objetos que adorava.

Uma lagosta imensa, em terracota portuguesa.

Sua toalha de mesa era lindíssima.

E, totalmente tecida em mil cores.

Mas, certamente, do que mais gostava ficava nos cofres.

E, lá estavam suas plumas coloridas.

E uma das imagens mais lindas que já vi até hoje.

Uma Nossa Senhora da Conceição de uns vinte centímetros de altura, esculpida em uma peça de marfim.

Era de uma delicadeza e de uma perfeição inacreditáveis.

Desta peça nunca mais ouvi falar”.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

 English translation (tradução para o inglês)

A martyr of the lonely struggle against intolerance in Belém

The people of Pará today live peacefully with the exuberant displays of sexuality by young people and adults in highly eroticized dances performed in public.

In the same way, they tolerate spaces in the media advertising “companionship” and “friendship,” which in reality promote paid sexual encounters.

This is because, in our regional society, there has undoubtedly been, in recent decades, a profound change in the way human sexuality is perceived.

One does not even need a background in Sociology to recognize this.

It is enough to appeal to memory—at least for those from Pará who are now in their sixties.

They lived their childhood in times that, compared to today, seem medieval in terms of social behavior.

In the early 1960s, many Catholic people of Pará, like other Brazilians, remained dominated by a religiosity steeped in rigid moral codes and intolerance toward those who held different beliefs.

Although at that time profound transformations were beginning to occur within the official Catholic Church—propelled by the Second Vatican Council convened by Pope John XXIII— the rigid moral environment we lived in contaminated even the interior of the Catholic world itself.

Priests could not walk in the streets without their cassocks, no matter the discomfort caused by Pará’s high temperatures.

And heaven forbid they became emotionally involved with their parishioners and, for that reason, “abandoned the cassock” to live with one of them.

A full sexual life before marriage was unthinkable for young Catholics.

And once married, they could not separate, no matter how disastrous the relationship turned out to be.

Divorce was not even considered.

Even legal separation was a banner carried by a few Brazilians—generally frowned upon.

A woman who left her husband carried a kind of curse.

Moreover, since Brazilian society regarded itself as entirely Catholic, the practice of other religions was disturbing.

A Candomblé practitioner was seen as possessed by demons.

A Spiritist was mocked for believing in reincarnation.

There was even a Spanish Jesuit, Oscar Quevedo, who campaigned against Spiritism—even in the titles of his books, where he cast doubt on Spiritist beliefs.

Titles of his works included: Are There Proofs That the Dead Act? and Identification of the Dead?.

Poor prostitutes were considered morally repulsive beings.

They lived confined to one area of the city—Rua Riachuelo and its surroundings.

In that “street of sin,” no respectable Belém native from a good family would ever pass.

The social fear bred by so much intolerance appeared even in song lyrics.

Like the one released by singer Ari Lobo, titled Evolution.

Soviet scientists had committed the heresy of trying to send an astronaut to the Moon.

In the lyrics of Evolution—in reality a hymn to backward thinking—human beings received a warning about the risks of such audacity:

“Our Lord gave man just a little of His knowledge.
Abuse has already begun.
Man wants to do everything.
He already knows the day it rains, shines, or thunders.
He sees us inside and out, heals, kills, and makes things grow.
Now he wants to go to the Moon without our Father’s consent.
Doctor, don’t tamper with the Moon, for the world may end.”

In that obscurantist phase, in the CidadeVelha neighborhood of Belém, lived Caetano Nunes Reis.

His delicate gestures and sophisticated clothes made him a target of the hatred fostered by the intolerance of the time.

Caetano read a lot.

He was a polyglot.

He spoke English and German fluently.

He became a teacher at the Paes de Carvalho High School and at the university.

Later, he founded an English school for children, when he adopted the pseudonym Klaus Keller.

In a national cultural contest on TV Tupi in São Paulo, he stood out by answering questions about one of the Doctors of the Catholic Church: the theologian Saint Augustine.

In the late afternoons, the children of CidadeVelha would see him walking the streets, solitary and silent—yet never losing his personal dignity.

Not even the golden anklet he wore could shake it.

One day, however, Caetano’s friends noticed he had been missing for several days.

His body was found inside his house, already in a state of decomposition.

His killer was never identified.

Caetano seemed to have been forgotten by the people of Belém. But in 2008, Katiuscia de Sá wrote a text about him. Her work appeared in the book Oficina Escola de Escritores, published by the CidadeVelha Association.

An excerpt:

“Thus lived and died Caetano Klaus Keller Nunes Reis, in a world forged through his own choices.
And choices often require a strong and resolute character.

From the very beginning, he had decided the path he would take.”

Three years later, in 2011, Caetano was honored in the blog of his friend, advertising design professor José Vasconcelos Paiva.

With a beautiful testimony about the human side of Caetano’s story, in which he was referred to by his pseudonym, Klaus Keller.

Excerpts from what Paiva wrote:

“I had the happiness of enjoying the friendship of this great polyglot.
I will write some articles recalling my visits to his house.
Klaus’s homosexuality was very public, and he was seen as a rare specimen.
He loved orchids and poppies.
He had a peacock, Denner.
And in the back of his house he kept his little language school.
A large shed that, on special occasions, he decorated marvelously.
Klaus had a slightly extravagant taste for plastic flowers.
On the staircase leading to his house, he placed enormous arrangements of various types of artificial flowers, some 1.5 meters tall.
His house had a very high ceiling, about five meters.
He always kept rose petals in a saucer, to rub on his hands and also on those of his friends.
Klaus cherished certain objects.
A huge lobster in Portuguese terracotta.
His tablecloth was beautiful, woven in a thousand colors.
But what he cherished most was kept in safes.
There lay his colorful feathers.
And one of the most beautiful images I have ever seen.
A statue of Our Lady of the Immaculate Conception, about twenty centimeters tall, carved from a single piece of ivory.
Its delicacy and perfection were unbelievable.
I have never heard of this piece again.”

*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist

(Illustration: Caetano, a silent fighter against repressive social intolerance.)

The post Um mártir da luta solitária contra a intolerância em Belém appeared first on Ver-o-Fato.