A ditadura militar de 64 plantou sementes amargas. A sombra da tutela militar foi uma delas Imagem: Foto: Evandro Teixeira
Como a caserna impôs um caminho para a transição democrática que manteve intocado seus privilégios de casta e ainda sua constante ameaça de intervenção
Por Aldenor Junior
O provérbio espanhol fala em criar corvos para depois perder seus olhos para eles. Nada mais parecido com o papel dos militares na formação histórica da democracia brasileira, até hoje tutelada pela presença mais ou menos explícita dos fardados. Eles se imaginam na qualidade de Poder Moderador, como se as Forças Amadas tivessem herdado essa prerrogativa diretamente do sangue azul da família imperial.
Quando o STF condenou, pela primeira vez, militares de altas patentes – três generais de quatro estrelas – Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira, e um almirante, Almir Garnier -, uma inflexão muito importante estava acontecendo. Não se tratou de uma condenação qualquer. Todos receberam pesadas penas de reclusão pelo crime de atentar contra o Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de estado, devendo em breve iniciar o cumprimento das penas em regime inicial fechado. Em 136 anos República, a regra de conceder anistia aos golpistas era quebrada e ainda por cima por um tribunal civil.
O baiano Rui Barbosa foi o autor de próprio punho da primeira menção às Forças Armadas na Constituição, em 1891, conferindo a elas o caráter de instituição permanentes, com a dupla função da defesa externa e da manutenção da lei, no interior. Mais ainda, os militares passaram a dar sustentação às instituições nacionais, “dentro dos limites da lei”. Nascia o famoso artigo 14 da primeira constituição republicana. Estava aberta a temporada das quarteladas. Contando com o próprio golpe de 15 de novembro de 1889, que impôs o regime republicano, até hoje, são 13 intervenções militares, entre as bem-sucedidas e as frustradas, e neste mesmo período, seis anistias. A mão firme do Supremo na última quinta-feira, 11, impôs uma parada neste péssimo costume, que retroalimentou, quase com os mesmos personagens, a sanha intervencionista que marcou todo o século XX e se projetou sobre a frágil e por vezes claudicante democracia de 1985. Os dados foram reunidos por Carlos Fico, o mais respeitado acadêmico que analisou os mov
Mais tarde, Rui Barbosa se arrependeu amargamente. É dele a expressão “pecado original da espada” em referência à proclamação da República. Esse pecado não cansa em se manifestar e está aí à espreita, hoje, sob novas roupagens.
A tentativa de golpe no 8 de janeiro, por exemplo, foi muito além que um ajuntamento de aloprados. Na cadeia dos fatos preparatórios ao golpe bolsonarista, era a “última chance”, derradeira cartada para interromper o mandato constitucionalmente eleito que mal se iniciara. A trama era simples: diante da convulsão social, que se autorizasse uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO). E Lula esteve muito próximo de cair nessa armadilha.
Alguém, por favor, pode responder de onde vem o fundamento da GLO, inscrita no artigo 142 da atual Constituição? Exato, esse dispositivo tem no tal artigo 14 já falado o seu ancestral mais vistoso. Não é por outro motivo que faixas e cartazes pedindo “intervenção militar com base no art.142” povoaram todas as manifestações de apoiadores de Bolsonaro nos últimos anos. É a fé cega no papel “moderador” dos militares e em sua suposta capacidade para intervir na imposição da lei e da ordem, muito embora necessitando da convocação de um dos poderes constituídos. No caso, pretendiam que a Presidência da República autorizasse sua própria deposição. Felizmente, fracassaram.
Há, porém, ameaças continuadas de golpe. A direita não se aquieta e pretende usar sua folgada maioria no Congresso para aprovar uma das diversas versões de anistia aos golpistas, seja de forma direta e explícita – o que ficou mais difícil depois do julgamento do STF -, seja de forma mais dissimulada por meio de redução de penas. Essa manobra está em curso exatamente neste momento, à luz do dia.
Como se sabe, existe apenas um antídoto aos “desvios republicanos”, eufemismo para as distintas versões de gorilagem institucional: o povo na rua, erguendo-se contra a barbárie que insiste em destruir – por dentro e por cima – a promessa de democracia que o povo brasileiro há tantas décadas almeja ver efetivada.
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