Quem quis assassinar o melhor administrador da cidade de Belém

Antônio Lemos, como é sabido, conseguiu canalizar para a melhoria da realidade urbana de Belém os avultados recursos de que a cidade desfrutou na sua Belle Époque, uma época de luxo para belenses, sustentada pela riqueza advinda da exportação da borracha da nossa região.

Lemos se manteve no cargo de administrador de Belém, o de intendente, por vários mandatos, entre 1897 e 1911.

Com ele frente da Intendência, Belém passou a ter arborização, boulevards, redes de saneamento e esgotos, rede de quiosques, pavimentações de ruas, código de postura, praças bonitas, bondes, crematório, necrotério, um novo e higiênico Matadouro Municipal, no belo local da atual Fundação Curro Velho.

Um outro palácio, conhecido como Palacete Azul, construído antes de Lemos se tornar intendente, ao lado do Palácio dos Governadores, ele reformou, em 1911, acrescentando-lhe novos revestimentos, móveis e objetos da moda europeia, assinados por mestres como Capranesi, De Angelis e Teodoro Braga.

A impressionante lista de benefícios trazidos pelas gestões de Lemos a Belém fizeram dele o principal responsável pelo desenvolvimento urbano de nossa cidade, já, àquela época, com mais de 300 anos.

Mas, em 1912, o lugar de Lemos na Intendência foi ocupado pelo médico e político, Virgílio Mendonça. 

Sobre quem continuaria a pesar uma grave suspeita, quase trinta anos após o fim do último mandato de Lemos.

A de ter pretendido matar aquele que ainda hoje é visto como o mais importante administrador da capital do Pará.

De Lemos, aliás, o próprio Virgílio tinha sido aliado, anos antes.

A tentativa de assassinato teria ocorrido no momento de maior humilhação por que Lemos passou, no fatídico ano de 1912, o da posse de Virgílio.

O ano foi aquele no qual os inimigos políticos do antigo intendente conseguiram, através de quatro jornais, insuflar boa parte da população de Belém contra ele. 

Lograram isto atribuindo a Lemos insistente e agressivamente um falso atentado contra seu adversário político, o respeitado senador Lauro Sodré, ex-governador do Pará.

Na verdade, o atentado foi uma encenação engendrada por eles mesmos.

Aquela guerra psicológica, contudo, encontrou ambiente político-social propício a ela

 Porque foi sustentada pelos jornais, num momento já tenso, conflitado, da História de Belém.

Em que os membros da elite paraense pareciam precisar de um bode expiatório.

No qual pudessem despejar sua enorme carga de ódios e frustrações provindos do fim da Belle Époque.

O ciclo econômico de abundância de recursos, com a exportação da borracha, havia terminado.

E Lemos, um maranhense, tinha sido quem pôde governar Belém contando com aqueles recursos, conquistando, com isto, no Pará, enorme peso político, e, no Brasil, projeção como grande administrador.

Sua força eleitoral era tanto que permitiu-lhe colocar um aliado seu, Augusto Montenegro,  no cargo de governador do Pará.

O qual, ele próprio não podia pretender porque a Constituição Estadual vetava-o a quem não fosse paraense.

Lemos, já fora da intendência, em agosto de 1912, soube que uma multidão insuflada por comícios e pelos jornais de seus inimigos estava incendiando a sede do jornal dele, A Província do Pará, um dos melhores da América do Sul.

Em seguida, a mesma horda dirigiu-se para o chalé de ferro onde ele morava, na Avenida Gentil Bittencourt, e, o destruiu com todos os bens que ele guardava nele.

Lemos era, então, um homem de quase 70 anos de idade.

Naquelas circunstâncias, só tinha conseguido conservar seu mandato de senador estadual.

Não poderia mais despertar a mesma inveja e o mesmo rancor de antes.

Ainda assim, foi caçado nas ruas por aquela turba transtornada.

Teve de se esconder na casa de um fogueteiro, seu vizinho.

E, de lá, foi retirado à força.

Para ser obrigado e caminhar sob xingamentos, empurrões, cuspidelas, e, apalpadelas em suas partes íntimas, até a residência de Virgílio Mendonça, na esquina da Rua Doutor Moraes, com a Avenida Nazaré.

O desrespeito com ele era tão grande que seu biógrafo, Carlos Rocque, não teve coragem de contar tudo por que Lemos passou, no seu livro sobre ele.

Contava, apenas, em particular, para os amigos que Lemos foi apalpado no bunda e teve ainda de ouvir esta infâmia:

– Vamos ver se esta galinha velha, ainda tem ovos para botar.

O triste cortejochegou, porfim, à casa de Virgílio. 

O que aconteceu no interior dela foirelatado, vinte e seis anosmaistarde, pelojornal Folha do Norte, naedição de 8 de março de 1938.

Na casa, já estava boa parte dos novos inimigos de Lemos, ex-aliados beneficiados com concessões públicas dadas por ele. 

Lemos teve de ceder ao cerco deles dentro da casa.

Mas, a eles não se curvou.

Ao contrário.

Embora, naquele momento, ainda envergasse sua roupa de dormir, com a qual fora forçado a sair às pressas de seu domicílio, já toda suja.

A postura digna e desafiadora assumida por Lemos ficou registrada na edição da Folha do Norte.

Assim como a chegada de um salvador inesperado.

“Quando Lemos foi levado em trajes menores à residência de Virgílio de Mendonça a quem se atribuía a autoria de todo o vergonhoso e repulsivo ato de selvageria, Lauro Sodré não tardou a aparecer ali.

Lemos, acusado em Pretório (numa espécie de tribunal da Roma Antiga), como um Cristo Moderno, dizia, entre os acusadores:

– Penitencio-me de haver feito uma política pessoal, nesta terra. E, nem assim, fiz amigos. Porque (virando-se para os presentes) ao senhor dei três monopólios.

– Não. Foram dois, respondeu um deles.

– Ainda bem que foram dois. Ao senhor – voltando-se para um outro – fiz isso ou aquilo. Nomeei.

Afinal, quase todos, exceção de Cipriano Santos, Paulo Maranhão, Jaime Pombo, pai de Brício Filho, haviam recebido favores do chefe decaído e martirizado.

Foi exigida a renúncia do mandato de senador, ao líder acusado.

Este pediu papel e escreveu:

“Em vista dos últimos acontecimentos…..´

– Não serve, replicaram. Tem que renunciar, simplesmente.

E, Lemos, coagido, renunciou ao mandato de senador.

Lauro Sodré, ao penetrar na sala, disse a Lemos:

– Vim salvá-lo.

Sodré foi à janela e leu a renúncia, pedindo “calma ao povo e generosidade para com o vencido”.

Prosseguiu a Folha do Norte, em seu registro:

“E, após, de braço com Antônio Lemos, Sodré, o adversário ferrenho da véspera, tomou o carro, levando Lemos para o Arsenal da Marinha, onde aquele ficou resguardado à sanha da multidão.

Foi um dos atos mais nobres da longa existência política de Lauro Sodré”.

Cinco dias após a publicação deste relato pela Folha do Norte, o jornal abriu espaço para a reação de Virgílio, então, com 75 anos de idade.

Ele reagiu, enviando uma carta ao jornal.

Cinco anos depois, morreu.

Mais de seis décadas se passaram.

Carlos Rocque, por fim, conseguiu entrevistar Emmanuel Sodré, filho de Lauro Sodré.

A entrevista foi publicada no livro de Rocque “Depoimentos para a História do Pará”, em 1981.

Nela, Emmanuel Sodré contou:

“A história foi assim:

O povo levou o velho Lemos para a casa do Virgílio Mendonça, que, então, era um inimigo rancoroso dele.

Inimigo dos piores.

O Virgílio era danado!

Era bravo mesmo.

Quando meu pai chegou à casa do Virgílio de Mendonça, chamou pelo dono:

– Ô Virgílio, onde está o Lemos?

– No quarto da puxada.

– Eu queria levá-lo para onde ele quiser ir.

– Mas escute, senador. Eu tinha a ideia de levá-lo para uma fazenda no Marajó, para ele sumir lá.

O meu pai não concordou:

– Não, deixe ele dizer para onde ele quer ir.

Depois meu pai me disse, porque, naturalmente, eu era filho, e, ele se abria como com ninguém:

– Eu não podia confiar o Lemos nas mãos do Virgílio.

Se ele o levasse para o Marajó, o Lemos não chegava lá.

Seria afogado no meio do caminho.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

 English translation (tradução para o inglês)

Who Wanted to Assassinate the Best Administrator of the City of Belém

Antônio Lemos, as is well known, managed to channel the considerable resources that Belém enjoyed during its Belle Époque—an era of luxury for the city’s inhabitants, sustained by wealth from the export of rubber from our region—into concrete improvements to the urban landscape.

Lemos remained in office as Belém’s administrator, the position of intendente, for several terms, between 1897 and 1911.

Under his leadership, Belém gained tree-lined boulevards, sanitation and sewage networks, kiosks, paved streets, a code of municipal regulations, beautiful squares, streetcars, a crematorium, a morgue, and a new and hygienic Municipal Slaughterhouse, located at the site where today stands the Fundação Curro Velho.

Another building, the so-called Palacete Azul—constructed before Lemos became intendente beside the Palace of the Governors—was remodeled by him in 1911, with new finishes, furnishings, and European-style decorative objects signed by masters such as Capranesi, De Angelis, and Teodoro Braga.

The impressive list of benefits brought to Belém through Lemos’s administrations made him the principal figure responsible for the city’s urban development, already more than 300 years old at that time.

But in 1912, his place at the Intendancy was taken by physician and politician Virgílio Mendonça.

Upon him would long remain the grave suspicion—still recalled almost thirty years after the end of Lemos’s last term—of having plotted the death of the man considered even today to be the most important administrator of Pará’s capital.

Virgílio, in fact, had once been Lemos’s ally.

The attempted assassination allegedly occurred at the moment of Lemos’s greatest humiliation, in the fateful year of 1912—the year of Virgílio’s inauguration.

That was when Lemos’s political enemies, through four newspapers, managed to stir much of Belém’s population against him. They did so by aggressively and repeatedly accusing him of a false attack against his rival, the respected senator Lauro Sodré, a former governor of Pará.

In truth, the attack had been staged by the enemies themselves.

That psychological war found fertile ground in the city’s social and political climate, for the campaign was carried out by the press in a moment already tense and conflicted in Belém’s history.

The elite of Pará seemed to need a scapegoat upon whom to unload their vast resentments and frustrations arising from the end of the Belle Époque.

The era of economic abundance brought by rubber exports was over.

And Lemos—a man born in Maranhão—had been the one who governed Belém during that period of prosperity, gaining enormous political influence in Pará and recognition across Brazil as a great administrator.

His electoral strength was such that he even managed to install his ally, Augusto Montenegro, as governor of Pará—a post he himself could not hold, as the State Constitution barred non-natives from occupying it.

Already out of office, in August 1912, Lemos learned that a crowd, incited by rallies and the press, was setting fire to the headquarters of his newspaper A Província do Pará, then considered one of the best in South America.

The same mob then moved to his iron chalet on Avenida Gentil Bittencourt, destroying it and all of his possessions.

Lemos was nearly 70 years old at the time.

Under such circumstances, he retained only his position as a state senator.

He no longer had the power to provoke the envy and resentment of former times.

Even so, he was hunted through the streets by the frenzied mob.

He hid in the house of a neighbor, a fireworks maker, but was dragged out by force.

He was compelled to walk, under insults, shoves, spit, and even groping of his private parts, to the residence of Virgílio Mendonça, at the corner of Dr. Moraes Street and Nazaré Avenue.

The indignities inflicted upon him were so severe that his biographer, Carlos Rocque, confessed he did not dare recount all that Lemos endured. In private, however, he would reveal to friends that Lemos had been groped in the buttocks and mocked with this insult:

— Let’s see if this old hen still has eggs to lay.

The sad cortege finally reached Virgílio’s house.

What happened inside was later reported, twenty-six years afterward, by the newspaper Folha do Norte, in its March 8, 1938 edition.

There, Lemos was confronted by many of his new enemies—former allies who had once received public concessions from him.

Surrounded, he resisted them with dignity.

Though still dressed in his soiled nightclothes, hastily thrown on when he was forced from his home, he stood firm and defiant.

The Folha do Norte recorded both his posture and the arrival of an unexpected savior.

“When Lemos was brought in scant clothing to the residence of Virgílio de Mendonça—accused of orchestrating the disgraceful and repulsive act of savagery—Lauro Sodré soon appeared there.

Lemos, accused in a Pretório (a kind of tribunal of Ancient Rome), like a modern Christ, said before his accusers:

— I repent for having done personal politics in this land. And even so, I made no friends. Because (turning to one man) I gave you three monopolies.

— No, two, one replied.

— Well, two then. And to you (turning to another), I gave this or that appointment.

Almost all of them—except Cipriano Santos, Paulo Maranhão, and Jaime Pombo, father of Brício Filho—had once benefited from the fallen and now martyred leader.

They demanded that he resign his Senate mandate.

He asked for paper and wrote:

‘In view of the recent events…’

— That won’t do, they replied. You must simply resign.

And coerced, Lemos renounced his mandate as senator.

At that moment, Lauro Sodré entered the room and said to him:

— I came to save you.

Sodré went to the window and read the resignation, asking the people for calm and generosity toward the defeated.

Then, arm in arm with Antônio Lemos, Sodré—his fierce enemy of the previous day—took him in a carriage to the Navy Arsenal, where Lemos was sheltered from the mob’s fury.

It was one of the noblest acts of Lauro Sodré’s long political career.”

Five days after the publication of this account in Folha do Norte, Virgílio Mendonça, then 75, sent a letter in response to the paper.

He died five years later.

More than six decades afterward, Carlos Rocque managed to interview Emmanuel Sodré, Lauro Sodré’s son.

The interview was published in Rocque’s 1981 book Depoimentos para a História do Pará.

In it, Emmanuel recounted:

“The story was like this:

The people took old Lemos to Virgílio Mendonça’s house, who by then was one of his most rancorous enemies. A fierce enemy. Virgílio was dangerous—truly harsh.

When my father arrived at Virgílio’s house, he asked:

— Virgílio, where is Lemos?

— In the back room.

— I want to take him wherever he wishes to go.

— But listen, senator. I was thinking of taking him to a farm in Marajó, to make him disappear there.

My father would not agree:

— No. Let him say where he wants to go.

Later, my father told me, because, naturally, I was his son and he confided in me:

— I could not entrust Lemos to Virgílio. If he had taken him to Marajó, Lemos would never have arrived. He would have been drowned along the way.”

*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist

(Illustration: João Alfredo Street in Belém during the administration of Lemos, on a postcard of the era)

The post Quem quis assassinar o melhor administrador da cidade de Belém appeared first on Ver-o-Fato.